Folha de S. Paulo


CRÍTICA

'Mulher do Pai' foge do didatismo que empobrece filmes brasileiros

MULHER DO PAI (muito bom)
DIREÇÃO Cristiane Oliveira
ELENCO Maria Galant, Marat Descartes, Verónica Perrotta
PRODUÇÃO Brasil, 2016, 14 anos
Veja salas e horários de exibição

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"Mulher do Pai", primeiro longa-metragem de Cristiane Oliveira, poderia ser mais uma história sobre conflitos adolescentes. O cinema brasileiro sempre foi profícuo no tema, desde "Marcelo Zona Sul" (1970), de Xavier de Oliveira, passando por "As Melhores Coisas do Mundo", de Laís Bodanzky (2010).

Mas o filme está repleto de surpresas: a protagonista Nalu (Maria Galant) mora perto da fronteira do Brasil com o Uruguai. Seu pai (Marat Descartes) é cego, resmunga pelos cantos. Nalu cobiça um futuro que nem sabe qual será. Acima de tudo, é responsável por cuidar do pai. Quem sabe, amá-lo.

Explorar a vida na fronteira é algo que nosso cinema tenta aprender há muito tempo. Se Carlos Hugo Christensen juntou forças a Astor Piazzolla e Jorge Luis Borges para criar "A Intrusa" (1979) –saga dos irmãos Nilsen em Uruguaiana, cruzamento entre Brasil e Argentina–, no filme de Cristiane Oliveira o olhar à "outra margem" soa menos preciso e mais reverente.

As personagens parecem sofrer de uma espécie de etnocentrismo invertido em relação ao Uruguai, de onde chegam pessoas e novidades, próximas e vivas.

Montevidéu é apresentada como território idealizado pela professora uruguaia, Rosario (Verónica Perrotta), com quem Nalu mantém relacionamento ambíguo, metáfora das expectativas projetadas no país vizinho.

Curiosamente, assim como em "A Intrusa", a casa em que vivem também se revela personagem, fagulha do tempo, aprisionando quem chegar perto, como se estivesse acima de todo o destino.

"Mulher do Pai" trabalha –muito bem, por sinal– com questões delicadas. Um deslize e as boas intenções cairiam no abismo da irrelevância. Os elementos "regionais" encontram-se misturados a uma universalidade capaz de jogar a trama em qualquer outro lugar do planeta.

Ainda assim, temos gostos próprios do cinema gaúcho. A atriz Amélia Bittencourt, intérprete da avó de Nalu, participou de "Coração de Luto" (1967): o clássico que tremulou lenços brancos, empapados com as lágrimas do cantor Teixeirinha.

Repleto de coisas não ditas, imenso de silêncios, o trabalho de Cristiane Oliveira é expressão de sentidos sem pistas fáceis, sem a necessidade do didatismo que empobrece grande parte dos filmes brasileiros atuais.

Não cair na tentação da chanchada sociológica representa um começo promissor, e podemos dizer que a diretora e roteirista conseguiu driblar a medusa.

Assista ao trailer de "Mulher do Pai"

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