Folha de S. Paulo


Margaret Atwood comenta bases reais do livro e série 'O Conto da Aia'

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A escritora Margaret Atwood (ao fundo) com Elizabeth Moss em cena de 'The Handmaid's Tale
A escritora Margaret Atwood (ao fundo) com Elizabeth Moss em cena de 'The Handmaid's Tale'

A regra que Margaret Atwood adotou, ao escrever "The Handmaid's Tale" ("O Conto da Aia", de 1985), foi que tudo precisava ter um antecedente real.

A adaptação do serviço Hulu TV para seu romance funciona de modo parecido. Mesmo quando a série expande e acrescenta cenas que não eram parte do material original, elas "poderiam ter sido, porque têm precedentes", diz Atwood. Antes de o episódio 10 ir ao ar, encerrando a temporada na quarta (14), ela comentou as bases históricas do livro e elementos desconcertantes da série.

CÓDIGOS DE VESTIMENTA (EP. 1)

As mulheres de Gilead usam roupas e cores prescritas pela sua posição na sociedade: vermelho para as aias, azul para as mulheres casadas, verde para as Marthas, marrom para as tias.

"Organizar pessoas de acordo com o que elas vestem é uma vocação humana muito, muito antiga", diz Atwood. Data do primeiro código legal conhecido, o Código de Hamurabi, que dispunha, por exemplo, que "apenas damas aristocráticas tinham o direito de usar véus". "Se uma escrava fosse apanhada usando um véu, a pena era a morte. Usar o véu significava fingir ser quem ela não era."

O traje da aia tem várias fontes (véus e toucas da era vitoriana, capuzes de freiras). A visita de Atwood ao Afeganistão –durante a qual ela usou um chador–, em 1978, também foi uma influência.

Todos esses códigos de vestimenta –como o uso da estrela de Davi amarela pelos judeus e de um triângulo rosa pelos homossexuais no nazismo– eram formas de "identificar, controlar pessoas". "É fácil perceber de imediato quem aquela pessoa é."

No Canadá, o vermelho das aias foi usado para os uniformes de prisioneiros de guerra, acrescenta Atwood, "porque é bem visível na neve".

O vermelho também veio da iconografia cristã do final da era medieval e começo do Renascimento. "A Virgem Maria sempre usava azul, e Maria Madalena, vermelho".

CONCEPÇÃO FORÇADA (EP.2)

Em Gilead os fins justificam os meios; vemos isso quando Janine tem um bebê e não consegue aceitar que não pode ficar com a criança.

"Há muitas utopias e distopias de base econômica, mas essa vai direto à raiz absoluta: quantas pessoas existirão em uma sociedade? Como essas pessoas serão concebidas?" Tiranos como Hitler e Ceausescu ditaram regras para a fertilidade em seus países e trataram como criminosos quem não as cumprissem. "Não foi por acidente que Napoleão proibiu o aborto. Ele desejava que as mulheres tivessem filhos para que não faltassem soldados."

As aias são forçadas a ter filhos para outras mulheres.

Quando uma junta militar assumiu o poder na Argentina, em 1976, até 500 crianças e recém-nascidos "desapareceram" –foram adotados por militares e policiais. Na Austrália e no Canadá, centenas de milhares de crianças indígenas foram separadas à força de suas famílias. "A situação provavelmente era apresentada como 'nossa, estamos dando uma oportunidade a essas crianças. Elas vão à escola!' Seria algo assim."

ESTERILIDADE (EP. 4)

Ao considerar seus problemas de fertilidade, a República de Gilead não leva em conta a outra metade da equação: os homens.

"A tia Lydia diz que as mulheres é que são estéreis. Por séculos e séculos, era isso que as pessoas achavam." Henrique 8º não parava de trocar de mulher (e de religião de Estado), aponta Atwood.

Na série, o médico que ajuda Offred sabe que as coisas não são assim. Serena Joy também, e decide que Offred [encarregada de engravidar por ela] pode se servir de um amante. "É uma das coisas de que Ana Bolena foi acusada –fazer sexo com seu irmão para gerar uma criança", diz.

A EMBAIXADORA (EP. 6)

"A Offred da série é mais ativa. Em parte porque se trata de uma série de TV americana." No romance, Offred nunca pediria a ajuda de um emissário estrangeiro.

No romance, Offred encontra turistas japoneses que presume serem enviados comerciais, mas não consegue responder de forma honesta quando lhe perguntam: "Você é feliz?". Na série, ela conversa com a embaixadora mexicana, a sra. Castillo (Zabryna Guevara) –e envia um bilhete ao mundo exterior.

Atwood recorda o papel histórico de intermediários. Na Segunda Guerra, o jornalista italiano Curzio Malaparte descobriu um meio de divulgar o que os alemães estavam fazendo na União Soviética. "Ele carregava páginas costuradas ao forro do casaco e nas solas dos sapatos, e as contrabandeava com a ajuda de embaixadores neutros. "É preciso confiar muito em alguém para fazer isso!"

A RESISTÊNCIA DE MAYDAY (EP.9)

Atwood pesquisou movimentos de resistência na Segunda Guerra Mundial. Um amigo seu foi da Resistência francesa e ajudou a tirar da França britânicos que haviam escapado de aviões abatidos. "O trabalho dele era entrevistá-los para garantir que não fossem alemães se fazendo passar por britânicos. Ele lhes perguntava de onde vinham, resultados de futebol, coisas assim. Se considerasse que eram alemães, eram fuzilados. Sem mais".

O Conto Da Aia
Margaret Atwood
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Ela também conversou com resistentes da Holanda e da Polônia. "Muita gente não sobreviveu." Ela menciona as integrantes do grupo Rosa Branca, pegas distribuindo panfletos contra o nazismo e executadas, e as espiãs britânicas, que às vezes operavam também como assassinas. Ter mulheres como agentes, diz Atwood, é uma técnica usada por movimentos de resistência e extremistas islâmicos, e os trajes das aias são convenientes: "Veja quantos lugares onde esconder coisas. Mangas largas! Meias! Ninguém vai olhar."


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