Folha de S. Paulo


Pianista relata em livro estupros na infância e 'salvação' pela obra de Bach

"Quando toco piano no palco é que fica perigoso", diz o pianista James Rhodes, 42, no início de seu livro, "Instrumental - Memórias de Música, Medicação e Loucura", publicado em maio no Brasil.

Isso porque, ele explica através de uma descrição minuciosa e aflitiva, precisa satisfazer uma série de tiques nervosos sem que sejam notados pela plateia ou interfiram no resultado da performance.

Não basta decorar as 30 mil notas da sonata que estiver tocando. "Se uma parte da minha mão esquerda resvala nas teclas do piano de um jeito, preciso replicar exatamente o mesmo toque com a mão direita", exemplifica.

O desafio se incrementa pelo fato de que Rhodes não se considera um pianista primoroso –apenas "bom o suficiente"– e que passou a se dedicar com afinco ao instrumento só na vida adulta, após uma década sem praticar.

Richard Ansett/Divulgação
O pianista inglês James Rhodes, autor de 'Instrumental
O pianista inglês James Rhodes, autor de 'Instrumental'

Os tiques são um breve resumo dos resquícios que o acompanham desde a infância, quando foi estuprado sucessivamente entre os seis e os dez anos por um professor.

Sem que Rhodes conseguisse falar sobre o ocorrido numa época em que direitos das crianças não estavam exatamente em voga, o abuso passou oculto e só veio à tona depois que o músico se tornou pai e buscou um grupo de ajuda. Falou sobre o fato em público pela primeira vez em uma entrevista ao jornal "The Sunday Times", em 2009.

Até então, passou por anos de isolamento no colégio, abandonou a Universidade de Edimburgo, foi internado em um hospital psiquiátrico, viciou-se em drogas e álcool. Identificou ter 13 diferentes personalidades, automutilou-se e tentou o suicídio.

Sob vários aspectos, diz, o livro é uma carta ao abusador. "[Para que saiba] que o nosso segredo não é mais um segredo, não é mais um vínculo que a gente compartilhe, que eu não tenho nenhum tipo de conexão privada íntima com você", escreve.

Para publicar suas memórias, porém, Rhodes precisou travar uma batalha com a ex-mulher, que não queria a obra divulgada sob o argumento de que ela poderia trazer danos ao filho, hoje com 14 anos.

Seu relato é mesmo visceral. Apesar de esmiuçar as consequências de um abuso sexual, o livro é também um tratado de amor à música clássica, ao que o músico inglês atribui sua sobrevivência.

Desde que, aos sete, ouviu pela primeira vez a "Chacona para Violino Solo", a peça de Johann Sebastian Bach tornou-se seu porto seguro. "Todo dia isso é suficiente para me convencer de que há algo maior e melhor do que meus demônios", escreve.

Instrumental - Memórias De Música, Medicação E Loucura
James Rhodes
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"Escrever o livro ajudou a transformar energia negativa em positiva", diz à Folha por e-mail. Anticonvencional como a carreira de Rhodes –iniciada tardiamente há cerca de uma década– é também "Instrumental".

Cada um de seus 20 capítulos inclui uma anedota sobre um compositor e ganha uma faixa em uma playlist (veja abaixo).

No livro, como na entrevista a seguir, ele critica a indústria fonográfica e propõe uma abordagem da música clássica com menos regras.

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Folha - Escrever o livro te ajudou a transformar energia negativa em positiva?
James Rhodes - De diversas maneiras escrever o livro ajudou a transformar energia negativa em positiva, sim. O que foi uma surpresa. Parece ter ressoado e ajudado muitas pessoas. Também foi útil falar sobre certos assuntos mais difíceis mais abertamente. É algo que todos precisamos fazer com mais frequência, penso.

Em algum momento você se arrependeu de tê-lo escrito?
Apenas durante a batalha jurídica para publicar o livro. Às vezes é estranho saber que pessoas que o leram sabem tanto a meu respeito. Mas, novamente, é importante falar sobre coisas como essas, mesmo que seja muita exposição ou desconfortável.

Você travou uma longa batalha com sua ex-mulher a fim de publicar suas memórias. No entanto, esse episódio ficou de fora do livro. Por que?
O livro já estava impresso e pronto para ser vendido quando o caso chegou ao tribunal. Foi uma experiência terrível, chocante, extremamente dolorosa e nunca deveria ter acontecido. Uma perda de tempo, dinheiro e energia e tudo por nada.

Você teve receio de ser reconhecido mais como uma pessoa que foi estuprada do que como um pianista?
Algumas vezes, sim. Mas eu sempre serei um músico em primeiro lugar. Faço concertos, lanço álbuns [seis até o momento] e faço programas de TV e de rádio sobre música. Essa é minha paixão e minha carreira. Ter sido estuprado é parte de quem eu sou, assim como ser um pai, um homem, de Peixes e um músico. E também negar ou ficar quieto sobre isso não está certo.

Às vezes você se descreve como um pianista não excepcional –apenas "bom o suficiente". Você lida bem com isso?
Na verdade não. Mas tudo que posso fazer é continuar praticando, trabalhando e torcendo para melhorar. Acho que a maioria dos músicos se sentem da mesma maneira. É por isso que continuamos praticando todos os dias.

No livro, você descreve como precisa satisfazer seus tiques enquanto toca, como se suas vivências viessem à tona durante a performance. Sua maneira de tocar muda conforme você amadurece ou lida com o passado?
Essa é uma ótima pergunta. Meu jeito de tocar não muda, não. O que muda são as vozes na minha cabeça. Isso está ficando mais fácil de administrar, mas o TOC não parece passar. Ainda. Talvez um dia. Se alguém que estiver lendo souber de alguma cura, por favor, entre em contato.

Você critica o universo da música clássica, como quando diz que o problema desse ambiente é que desviam o foco da música para o ego. Você acredita ter êxito em evitar essas armadilhas desse universo?
Tudo que sempre quis foi tocar piano. E, com sorte, apresentar essa música a quantas pessoas fosse possível. Uma das coisas de que tenho mais orgulho neste livro é a playlist que criei com algumas das composições mais incríveis –por favor, escute se quiser conhecer um pouco mais sobre música clássica, mas não está muito certo de por onde começar. As "regras" da música clássica –códigos de vestimentas, salas de espetáculo, conduta do público etc.– são bobagens e não têm a ver com apreciar música ou fazer as pessoas se sentirem bem-vindas. É por isso que meus concertos são mais casuais e acessíveis, espero. A única coisa que não muda é a música, porque é perfeita do jeito que ela é.

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INSTRUMENTAL - MEMÓRIAS DE MÚSICA, MEDICAÇÃO E LOUCURA
AUTOR James Rhodes
EDITORA Rádio Londres
QUANTO R$ 46,40 (266 págs.)

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