Folha de S. Paulo


Brasileiros ocupam palácios em mostras paralelas à Bienal de Veneza

Um estranho volume negro atravessa um dos salões nobres do Contarini Polignac, um palacete à beira do canal Grande, em Veneza. Esse amontoado de papel carbono antes cobria todo o chão de pedra da sala do espaço decorado com afrescos.

Num canto, uma tela de TV mostra o mesmo ambiente antes que o papel fosse amassado num nó no meio do piso. Essa imensidão plácida e preta contrasta com a decoração gótica e renascentista ao redor até que a artista Carla Chaim surge em cena de branco e passa a descascar essa pele.

"Vou amassando e transformando esse retângulo", diz a brasileira, uma das finalistas do prêmio Future Generation, que realiza até agosto uma mostra de seus artistas em paralelo à Bienal de Veneza.

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Instalação de Carla Chaim na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza
Instalação de Carla Chaim na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza

"É uma intervenção estruturada no gesto, um desenho negativo. O papel deixa de ser para traçar linhas e se forma como escultura e vestígio da ação. No final, o corpo está cansado e sujo de preto."

Um dado ou desejo de performance, aliás, marca obras de outros brasileiros com exposições abertas na cidade italiana na temporada da mais tradicional mostra de arte contemporânea do planeta, que segue até novembro.

No andar debaixo do mesmo palacete, Vivian Caccuri, revelação da última Bienal de São Paulo, montou uma espécie de altar com caixas de som. Diante delas, chamas de velas tremem ao som dos graves.

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Instalação de Carla Chaim na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza
Instalação de Carla Chaim na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza

Não é uma música qualquer. Caccuri estudou uma partitura do século 4º escrita por santo Ambrósio, clérigo que liderou uma revolução na música católica, exigindo silêncios e limitando o movimento do corpo na tentativa de tornar o culto mais solene.

CORPO DURO
"Eles acordavam no meio da madrugada para cantar esse negócio. Era a coisa mais boêmia que podia acontecer na vida desses padres", diz a artista. "Minha ideia era devolver o corpo a essa música. Queria muito levar esse trabalho a Veneza porque ele dialoga com a Itália, que é onde o corpo branco, ocidental, latino se endureceu."

Sua instalação, aliás, lembra uma capela escura, um espaço que pode ser tanto uma sacristia quanto uma alcova libidinosa –se não exige decoro e silêncio, desperta no espectador os desejos latentes que costumam vir à tona em transes na pista de dança.

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Instalação de Vivian Caccuri na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza
Instalação de Vivian Caccuri na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza

"São os timbres da rádio e dos clubes", diz a artista. "A partitura da época era feita para a voz, mas toquei essas notas no sintetizador, só com os graves, lembrando a melodia que a gente ouve no pop."

Nesse sentido, as obras de Chaim e Caccuri, que concorreram ao prêmio organizado pelo bilionário ucraniano Victor Pinchuk, parecem opostos ou negativos uma da outra –enquanto a primeira subverte a suntuosidade do palacete com um gesto minimalista, que tudo anula e afoga, a segunda encarna um passado de decoro e limites para detonar um transe catártico, desfazendo as amarras ao corpo impostas por uma arquitetura gótica e sombria.

POESIA E ESTILHAÇOS
O corpo também surge como elemento central das performances de Paulo Bruscky. Um dos quatro artistas escalados para a mostra principal da Bienal de Veneza -ao lado de Ayrson Heráclito, Erika Verzutti e Ernesto Neto, ele realizou, nos jardins da antiga mansão de Peggy Guggenheim, uma série de ações.

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Instalação de Vivian Caccuri na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza
Instalação de Vivian Caccuri na mostra do prêmio Future Generation, em Veneza

Atores comandados por ele circularam por ali cobertos de lençóis soletrando as palavras "poesia viva", reencenando um ato concebido na década de 1960 como um protesto contra a ditadura brasileira.

Nada longe dali, Vik Muniz, que tem uma individual em cartaz no Palazzo Cini, mostra o que parece ser os vestígios de uma performance. São esculturas de vidro da ilha de Murano, como tantos badulaques vendidos aos turistas que invadem Veneza, com a diferença que as peças foram criadas com a aparência de estarem quebradas, como rastros de um ato de destruição.

Elas amplificam, no caso, a violência lenta e romântica do resto das obras na exposição.

Muniz ali recriou as ruínas pintadas por mestres venezianos como Canaletto em seu tradicional método de colagem, em que fragmentos de outras imagens são dispostos sobre um único plano para criar um quadro ultracolorido –uma visão mais deslumbrada, no caso, desse labirinto aquático tomado pela fúria das artes visuais.


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