Folha de S. Paulo


Artistas usam suas próprias biografias na criação de espetáculos teatrais

A realidade, em especial a da política brasileira, já extrapolou tanto a ficção que foi preciso fazer o caminho inverso: reafirmar a realidade, mesmo que num âmbito tradicionalmente pautado pela ficção, como o teatro.

Foi em parte pensando nisso que o diretor Nelson Baskerville e sua companhia, a Antikatártika Teatral, decidiram usar suas próprias biografias para criar "A Vida", peça que estreia nesta sexta (2).

O grupo faz uma espécie de jogo a partir de 15 cenas que narram momentos da vida dos seis atores e do encenador. São fragmentos por vezes banais, outros que relatam histórias duras, como um abuso na adolescência. Além do aspecto confessional, há vídeos e fotos projetados no palco.

"O ator em cena fala com muita propriedade da própria experiência", diz Baskerville.

Na peça, são "sorteadas" oito dessas 15 cenas. Os atores giram uma roleta que determina, na hora, qual história será encenada. É uma alusão, afirma o encenador, ao aspecto aleatório da vida. A cada sessão tem-se, assim, uma experiência diferente.

"A peça põe a gente num lugar de escuta [do outro], do afeto", diz o ator Hercules Moraes. "O próprio jogo nos coloca nessa situação de inter-relação com a plateia."

A autobiografia não é um processo novo na carreira de Baskerville; em "Luis Antonio - Gabriela", ele relatava a sua história com o irmão travesti.

Pode ainda ser visto nas pesquisas de outros coletivos e em outras áreas, como o cinema –a última edição do festival É Tudo Verdade reuniu filmes com histórias pessoais dos criadores.

Segundo os artistas, mostrar ao vivo os protagonistas das histórias ali contadas é também uma forma de criar mais empatia no público.

O Barracão Cultural passa por processo semelhante com "On Love", texto do inglês Mick Gordon que o grupo estreia em julho. O dramaturgo criou a versão original, londrina, com a biografia do elenco, em uma série de cenas sobre o amor. Depois levou o projeto para outros países.

Em sua montagem, dirigida por Francisco Medeiros, o Barracão reuniu histórias dos atores e depoimentos recolhidos de outras pessoas. "A gente se interessou em investigar o que é o narrador. Se eu não tomo aquilo como meu, qual o sentido dessa narrativa?", diz a atriz Eloisa Elena.

O grupo faz uma encenação intimista, com o público colocado sobre o palco. "É o parar para ouvir a história do outro."

DESCRENÇA

"Há um questionamento sobre as grandes ficções. E esse salto documental é também uma descrença de que a ficção dê conta da nossa experiência humana", diz a atriz e diretora Janaina Leite, que reestreia nesta sexta "Conversas com Meu Pai", inspirada em seu relacionamento paterno.

Ela iniciou sua pesquisa no documentário cênico em 2008 com "Festa de Separação", espetáculo no qual ela e o ex-marido Felipe Teixeira Pinto falavam sobre o fim de seu relacionamento.

Na terça (6), ela lança "Autoescrituras Performativas: do Diário à Cena" (ed. Perspectiva), em que teoriza sobre o processo autobiográfico no teatro. "É um pulso estético e político tirar essa mediação [da ficção] e tentar falar diretamente do real."

"Acho que o pessoal consegue ser muito político, essa coisa de se posicionar perante os outros", diz o diretor Leonardo Moreira, da Cia. Hiato.

Desde sua formação, há nove anos, o grupo coloca em cena traços biográficos, seja usando o prenome real dos atores para os personagens, seja contando suas histórias.

Em "Ficção" (2012), mesclava narrativas reais do elenco com outras inventadas. Com "Amadores" (2016), reuniu histórias pessoais do grupo e de atores diletantes. Para o ano que vem, prepara uma versão da "Odisseia" costurada por suas histórias de vida.

"Trazemos a biografia não para expô-la, mas para levantar questões públicas, como a assembleia virtual que temos hoje em dia [com as redes sociais]", conta o diretor.

Segundo ele, o grupo começou a usar suas histórias de forma intuitiva, ainda que questionando a decisão. "É perigoso ficar narcisista."

"Esse medo do narcisismo ronda", afirma Janaina. "Mas é um medo que tem que ser enfrentado. A [atriz, dramaturga e diretora espanhola] Angélica Liddell, que trabalha profundamente com o autobiográfico, diz que vencer essa barreira é como vencer a barreira do som. Você encontra uma liberdade total."

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A Vida

QUANDO sex., às 21h; sáb., às 20h; dom., às 18h; de 2/6 a 9/7
ONDE Sesc Santo Amaro, r. Amador Bueno, 505, tel. (11) 5541-4000
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

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Conversas com Meu Pai

QUANDO sex., às 20h; sáb., às 18h; de 2 a 24/6
ONDE Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363, tel. (11) 3221-4704
QUANTO grátis
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

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On Love

QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; de 7 a 30/7
ONDE Teatro Cacilda Becker, r. Tito, 295, tel. (11) 3864-4513
QUANTO R$ 20
CLASSIFICAÇÃO 16 anos


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