Folha de S. Paulo


Amigos contam da vida de Belchior no Uruguai, onde ele se refugiou em 2009

San Gregorio de Polanco é uma cidade de 3.500 habitantes no centro do Uruguai, a 369 km de Montevidéu. Pelos murais que cobrem suas casas e praças, se define como primeiro Museu Aberto de Artes Visuais da América Latina.

É também o lugar onde Belchior e Edna Prometeu, sua companheira, escolheram para morar quando o músico saiu de cena, nos anos 2000.

Editoria de Arte/Folhapress

Em uma fria manhã de inverno, em meio à bruma que vem do rio Negro, o casal chegou ao Lugarcito (lugarzinho, em espanhol), um complexo de bangalôs para turistas.

César Caétano é o proprietário do Lugarcito. Ele recorda: "Não sabia quem era Belchior. Logo ao chegar, me disse que queria alugar por um tempo prolongado. Entendi que não estava de passagem, ele dava a impressão de querer se estabelecer aqui -pelo menos, por muitos meses".

Mais tarde comentou com seu amigo Ruben Dinardi que um tal Belchior e sua mulher haviam se instalado no Lugarcito. "Belchior? Como ele é?", se interessou Dinardi. "Um cara com um bigodão", respondeu. A surpresa de Dinardi foi enorme: "Você não sabe quem ele é? É um dos maiores compositores brasileiros".

Caétano, Dinardi e suas mulheres começaram uma amizade com Belchior e Edna. Jantar juntos virou costume.

"Para mim, tê-lo em casa era um acontecimento", diz Dinardi. "Ele se surpreendeu por eu conhecer seu trabalho. Pareceu não acreditar, então lhe trouxe seus discos. Ele ficou emocionado. Não acreditava que, no interior do Uruguai, alguém o conhecesse.

Os livros ampliaram a amizade. "Ele tinha uma cultura geral muito ampla e se interessou pela literatura uruguaia, especialmente por Eduardo Galeano, de quem tenho todos os livros. Passou dias inteiros lendo-o, depois continuou com Juan Carlos Onetti. Durante sua estadia, nossa vida foi trocar livros e música."

Caétano o recorda escrevendo "de forma hemorrágica". "Sentava na varanda e escrevia à mão, em cadernos."

"Estava desenvolvendo vários projetos", ecoa Dinardi. E menciona, como outros que conviveram com Belchior em seu recolhimento, a tradução de "A Divina Comédia" na qual o músico trabalhava -"uma versão pessoal, interpretativa", que Belchior lhe dizia considerar seu "projeto mais importante" na vida.

CLANDESTINO NÃO

Todos os amigos uruguaios o recordam como uma pessoa muito culta, amável, simples e aberta à comunicação.

"Conhecemos as versões da imprensa que o mostram como alguém em fuga, mas não foi assim. Belchior não gostava de falar da sua vida pessoal e nós respeitávamos, mas fazia referência, sim, aos seus filhos, que amava muito e com quem mantinha contato por telefone", enfatiza Dinardi.

Por que, então, a reclusão?

"Acho que ele fugia do barulho, da imprensa, do sistema de obrigações que rodeia um músico da sua dimensão e da fama que o acompanha", explica Tonio Pereira, diretor do canal local de TV, a quem Belchior deu uma entrevista. "Ele impôs uma só condição: que se referisse à sua obra, e não à sua vida pessoal", diz.

"É possível deduzir que tivesse dois motivos para viver aqui: ter um espaço de criação calmo e um espaço para desenvolver sua relação com Edna. Era um vínculo novo e que havia gerado conflitos com seus núcleos familiares anteriores", diz Pereira.

"De jeito nenhum Belchior vivia clandestino como se dizia. Ele se relacionava com pessoas no Brasil, com quem falava com frequência", diz.

Caétano explica que o artista "gostava de caminhar pelas ruas sem que nenhum admirador o abordasse".

"Uma vez, tivemos de ir até Rivera [fronteira com Santana do Livramento, no Brasil], e as pessoas o reconheceram; se aglomeraram, não o deixavam entrar no banco. A gerência teve de fechar as portas para atendê-lo. 'Está vendo, César? Isso não é vida', disse."

"Belchior gostava das coisas simples. Com meu neto, Joan, que tinha sete anos, havia descoberto [o ator mexicano] Cantinflas. Passavam horas vendo vídeos de seus filmes e lendo a Bíblia em português", conta Caétano.

Violonista e diretor do coral do colégio local, Daniel Prazeiro ficou impressionado ao conhecer Belchior.

"Não podia acreditar. Sou da fronteira e cresci influenciado pela música brasileira. Morei em São Paulo e no Rio, e ele foi uma referência para mim. Eu me surpreendi com sua simplicidade. Jamais permitia ser tratado como ídolo."

Prazeiro evoca os "vários projetos" de Belchior. "Ele me mostrou o roteiro e rascunhos que estava fazendo para uma HQ e que enviava ao Brasil, não sei para quem, mas a um desenhista." E acrescenta que ele "também estava compondo". "Gravava a linha melódica e o texto, e enviava ao arranjador em São Paulo; sempre estava ativo."

"Ele tinha uma grande noção latino-americanista, presente nas suas letras, e planejava traduzir compositores uruguaios ao português."

A descoberta, pela TV Globo, em agosto de 2009, de que Belchior e Edna estavam ali pôs fim a sua relação idílica com a cidadezinha. "Foi horrível", resume Caétano.

"Chegaram e bateram na porta de todos os bangalôs. Belchior e Edna fecharam todas as janelas, ficaram duas horas trancados, mas no final não tiveram saída a não ser aceitar a entrevista", recorda o dono do Lugarcito.

"Dias depois partiram rumo ao Rio Grande do Sul, sem dizer para que cidade. Trocamos endereços de e-mail, mas nunca responderam às nossas mensagens. Um carro veio buscá-los e foram embora. Uma pena, pois aqui nos lembramos deles com muito carinho", conclui Caétano.

Tradução de DENISE MOTA


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