Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Morte de Vito Acconci encerra era de ouro da performance visceral

Vito Acconci foi santo, monstro, mártir e voyeur por trás de performances, vídeos e desenhos arquitetônicos viscerais que chacoalharam Nova York nas décadas de 1960 e 1970. Trabalhos que fizeram dele a personificação de um espírito de vanguarda há muito sepultado na metrópole mais influente do planeta.

Sua morte, aos 77, na semana passada, encerra uma era de ouro de um gênero artístico calcado na presença do corpo -no caso, um corpo rebelde, que se torna violento, imprevisível, às vezes sinistro, diante dos limites impostos pelo espaço físico.

Idealizador de ações efêmeras, muitas vezes chocantes, o artista era um dos últimos remanescentes da cena que se desenvolveu num SoHo pré-gentrificação na Manhattan dos anos 1970, onde viviam figuras como Dan Flavin, Donald Judd e Gordon Matta-Clark, com quem ele teve talvez maior afinidade estética.

Acconci Studio
Hand and Mouth', performance de Vito Acconci realizada em 1970
'Hand and Mouth', performance de Vito Acconci realizada em 1970

Uma atitude de resistência ao mercado e a vontade iconoclasta de desafiar códigos de conduta enraizados no urbanismo e na arquitetura cada vez mais engessada estava na base de suas ações.

Em 1972, na mais célebre delas, Acconci se escondeu debaixo do assoalho inclinado de uma galeria nova-iorquina e se masturbou oito horas seguidas por dia, sussurrando fantasias sexuais por entre as frestas do piso.

"Seedbed", como batizou a performance, orientou desde o início uma obra plástica calcada em questionar a experiência estanque do corpo no espaço, ou seja, Acconci buscava desestruturar e desestabilizar a forma como o ambiente construído determinava o comportamento.

Acconci Studio
Soap & Eyes', performance de Vito Acconci realizada em 1970
'Soap & Eyes', performance de Vito Acconci realizada em 1970

Outras ações, como a que aguardava anônimos de madrugada num píer de Manhattan para contar seus segredos, ou aquela em que seguia estranhos pelas ruas, interrompendo a caçada só quando seu alvo entrava num prédio, revelam não só o potencial explosivo da crítica que fazia à opressão da arquitetura, mas também uma verve poética que extraía beleza do acaso.

Não à toa, entre suas referências conceituais estão menos artistas visuais e mais escritores e cineastas, como Jean Genet, Jean-Luc Godard e William Faulkner, todos retratistas de vidas à flor da pele, marcadas pelas forças macabras do ambiente ao redor.

Rodeado dos minimalistas que transformaram o ferro velho que era o SoHo pós-industrial num dos terrenos mais férteis da história da arte, Acconci construiu uma obra plástica suja, invasiva e perturbadora, ao contrário da limpeza das luzes elétricas de Flavin e das estruturas metálicas resplandecentes de Judd.

Acconci Studio
Seedbed', performance de Vito Acconci realizada em 1972
'Seedbed', performance de Vito Acconci realizada em 1972

Enquanto Matta-Clark rasgava paredes e cortava prédios ao meio, Acconci levou essas mutilações para a esfera íntima do corpo. Numa ação, conversava com o próprio pênis. Noutra, ele se mordia inteiro, deixando marcas de dentes numa pele macia.

Nesse sentido, Acconci atacava ali a neutralidade fajuta proposta pelo modernismo, de espaços austeros, clínicos, que ignoravam a escala do corpo. Diante do público, ele encarnava a cobaia desesperada, que prefere o suicídio a uma existência anestesiada.

Sua rejeição à maior vanguarda do século 20, no caso, influenciou gerações futuras de artistas no mundo todo, em especial no Brasil, país que vive de modo intenso essa relação de amor e ódio com a arquitetura moderna.

Nomes como Marcelo Cidade, Renata Lucas, Clara Ianni, Jonathas de Andrade, Lais Myrrha e uma série de outros autores que formam agora o time de frente das artes visuais do país devem muito à exuberância grotesca de Acconci.

Numa série de outras ações que extrapolavam o próprio corpo, no entanto, o americano abriu um flanco para ataques de críticos que o chamaram de machista.

São trabalhos como os que escondia o pênis entre as pernas ou queimava os pelos do peito que apertava para formar seios de mentira. Ou ainda a ação em que tentava abrir à força os olhos fechados de uma de suas namoradas.

Sua relação ambígua com o sexo oposto, no entanto, não impediu que Acconci se tornasse uma das figuras mais influentes para artistas mulheres, muitas delas com trabalhos de viés feminista, como Sophie Calle, Marina Abramovic e Valie Export.

'SOCIAL PRACTICE'
Entre suas obras no campo da arquitetura e do mobiliário, Acconci criou uma mesa de jantar que se projetava para fora da sala como um trampolim sobre a cidade, peça remontada no ano passado no PS1, anexo do MoMA, em Nova York, que realizou uma última retrospectiva dedicada ao artista.

Em São Paulo, no festival Arte/Cidade, há 15 anos, ele também criou banheiros para moradores de rua, numa crítica à falta dessas estruturas para populações carentes, antecipando a era da chamada "social practice", de performances e obras de arte capazes de melhorar, de fato, a vida nas cidades.

Acconci, aliás, passou suas últimas décadas de vida dedicado à arquitetura, tomando distância da performance da mesma forma que Chris Burden, morto há dois anos. Os dois artistas, pilares dessa linguagem, abandonaram o gênero quando sentiram que ele já se esgotava.

Talvez porque a violência contra a qual protestavam -Burden chegou a tomar um tiro para denunciar o horror da Guerra do Vietnã- havia se tornado rotina. A urgência do mundo, na visão de Acconci, já era outra -a agressão das cidades contra todos nós.


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