Folha de S. Paulo


Análise

Jonathan Demme mostrou mundo regido por forças incontroláveis

Chris Pizzello/Invision/AP
FILE - In this Sept. 13, 2016, file photo, Jonathan Demme, director of the concert film
Jonathan Demme no Festival de Toronto de 2016

Pode-se pensar em Jonathan Demme, o ganhador do Oscar por "O Silêncio dos Inocentes". E lá, com Oscar ou não, já encontramos o insurrecto.

Aquele que faz de Hannibal, o Canibal, o verdadeiro herói de seu filme: aquele que come imbecis com todos os requintes.

Por notável que continue a ser, não é o único.

Demme começou com Roger Corman, o que é um bom indício para diretores de sua geração. Praticamente todos passaram pela "escola Corman". Aprenderam a fazer muito com pouco dinheiro. E, quando tinham dinheiro, faziam com que aparecesse na tela.

Dinheiro não havia quando fez "Celas em Chamas" (1974), filmeco admirável de presídio de mulheres, desses que o público letrado quer distância. Mas o talento já estava lá.

Já em "O Abraço da Morte" (1979), Demme entrava pela porta de serviço num tema delicado: o antissemitismo e a vingança contra os crimes de guerra. Uma estranha vingança, como verá quem assistir ao filme, ainda de pequena produção, mas em que ele contou já com Roy Scheider e Janet Margolin. Não é tão pouco assim.

Logo em seguida vem o intrigante "Melvin e Howard" (1980). Sendo que Howard, no caso, é Howard Hughes. Acidentado de moto tem a vida salva pelo modesto Melvin. Quando morre, Hughes teria deixado sua interminável fortuna para Melvin. Mas, claro, haverá quem conteste o direito do pobre Melvin.

Apenas estes três filmes já estabelecem um percurso e uma obsessão: o mundo é não apenas múltiplo como regido por forças múltiplas e incontroláveis.

Isso ressurgirá em registro mais cômico no belo "Totalmente Selvagem" (1984) e talvez menos intenso em "De Caso com a Máfia" (1988), antes de reaparecer, justamente, em "O Silêncio dos Inocentes", em que toda a lógica é subvertida e cabe ao supercriminoso Hannibal desvendar um crime, por intermédio de uma agente aprendiz do FBI.

Mas, atenção, a jovem é inteligente. Eis o que Hannibal admira nela ao ponto de, entre os dois, criar-se uma relação transferencial bastante forte.

O mesmo tipo de relação que veremos em "Filadélfia" (1993), entre um jovem e brilhante advogado atingido pela Aids (pelo acaso, de certo modo...) e um jovem e desconhecido advogado negro. Este último não morre de amores por gays. Talvez o advogado gay não morresse de amores por negros. Mas, que importa: o acaso torna essa aproximação inelutável, assim como a compreensão que nasce entre eles.

Se a indústria de cinema castigou duramente os bons e ótimos diretores das décadas passadas, Demme ainda conseguiu, aqui e ali, respirar, como em "Sob o Domínio do Mal" (2004).

Talvez seja um pequeno filme, no entanto, o que melhor fala do espírito insurrecto de Demme no século 21: "O Casamento de Rachel" (2008), em que, apesar do título, a verdadeira questão (ou verdadeira estrela) é Kym, a irmã de Rachel que sai de uma casa de saúde (mental) para acompanhar o casamento da irmã. Um grande momento, no mais, de Anne Hathaway, em filme que passou quase em branco.

Não tão em branco, acredito, quanto "Ricky and the Flash: De Volta para Casa" (2015). Sou do tipo de gente que sempre que pode segue cineastas como Demme. E no entanto nem notei que esse tinha entrado em cartaz, ou chegado aqui em vídeo ou lá o que seja.

Jonathan Demme morre aos 73 anos. É cedo para os padrões de vida atuais. Talvez seja a hora certa para cineastas dessa grande geração que surge entre os anos 1960 e 70 do século passado. O que tinham a dizer está dito. O que ainda têm a dizer a indústria não parece muito a fim de escutar e, menos ainda, de difundir.


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