Folha de S. Paulo


Sob gestão Doria, Biblioteca Mário de Andrade deixa de funcionar 24 horas

Nove meses e um prefeito depois, a Biblioteca Mário de Andrade voltará a fechar durante a noite. A gestão João Doria (PSDB) resolveu encerrar o projeto do mandato anterior, de Fernando Haddad (PT). A decisão já passa a valer nesta segunda-feira (24).

Em vez de ficar aberta 24 horas por dia, a instituição funcionará diariamente das 8h às 22h em dias úteis e até as 20h nos demais. O novo diretor da biblioteca, Charles Cosac, diz que a gestão anterior superestimou o tamanho do público noturno, que os custos são elevados e o número de livros emprestados é pequeno.

"O Brasil tem essa coisa do superlativo: sabadão, domingão, noitão. Tem essa coisa de o maior abacate, a maior melancia, o maior abacaxi do mundo. A gente tem uns dados meio fictícios, que não fazem sentido", diz Cosac.

A mudança, segundo ele, representará uma economia de R$ 850 mil em um orçamento disponível de R$ 10 milhões anuais (há um processo para descongelar mais R$ 4 milhões), ou seja, 8,5%. Haverá também demissões de funcionários terceirizados. O total ainda não foi definido.

Faltam dados específicos em relação ao público noturno. Só é possível comparar a medição oficial total da biblioteca: no segundo semestre de 2016, quando começou o funcionamento integral por 24h, o número de pessoas na seção circulante foi de 290 mil. No ano anterior, foi de 143 mil.

O público, explica Cosac, é contabilizado por meio de um aparelho medidor, que diz ser falho por contar mais de uma vez a mesma pessoa.

Para contabilizar especificamente o público noturno e embasar sua decisão, ele adotou um método não científico: na semana de 18 a 24 de março, contratou um ex-segurança seu para passar a noite na biblioteca, enviando-lhe por WhatsApp relatórios de hora em hora.

Conclusão: circularam entre 13 e 26 pessoas por madrugada na biblioteca.

Já os números oficiais de empréstimos de livros encerram uma aparente contradição. Na semana do levantamento feito por Cosac, quase nenhum livro foi emprestado entre 20h e 8h. Mas dados da gestão anterior, enviados por ele, mostram um crescimento de 75% no número de empréstimos no segundo semestre de 2016. Destes, 10% foram emprestados de noite, o equivalente a 23 exemplares.

"Antes, a biblioteca só emprestava dois livros por pessoa e passou a emprestar quatro. Esse crescimento não tem a ver com a madrugada", afirma Henrique Ferreira, supervisor de acervo da instituição.

Para o ex-diretor da Mário Luiz Armando Bagolin os dados tímidos levantados pela gestão do sucessor são reflexo da mudança de projeto.

"Se os números caíram, é porque a Mário voltou a ser uma biblioteca convencional. Não é só abrir as portas 24 horas, a ideia era ser um complexo cultural. Ele contabiliza depois de ter tesourado as atividades noturnas", diz.

Bibliotecas abertas de madrugada são comuns nas universidades. Já bibliotecas municipais abertas nesse período, como a de Istambul, são mais raras. Em Salt Lake City, cidade de 190 mil habitantes no oeste dos EUA, a medida foi barrada por causa do custo.

Antigo diretor dessa biblioteca, John Spears defende que essas instituições sejam vistas com tendo "responsabilidade pública". "São espaços que dão segurança e assistência, e têm que estar disponíveis quando as pessoas precisarem deles. Há pessoas que vivem fora do horário comercial."

Para a artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Giselle Beiguelman, moradora do centro, a solução para o público não é o fechamento da biblioteca, e sim o estímulo à presença de pessoas na área.

"Os espaços devem ser pensados de forma integrada, com atividades no Theatro Municipal e outros locais. Isso leva a pensar no transporte público funcionando nesse horário e na moradia na região, deserta porque só é ocupada por lojas e escritórios."

MADRUGADORES

Numa madrugada de quinta, às 2h30, a Folha conta 19 pessoas na biblioteca. Cinco delas são moradores de rua que dormem na sala adjacente àquela onde ficam os livros.

"É mais tranquilo e silencioso que a pensão onde eu moro", diz João Gilberto Araújo, 27, que estuda para o vestibular de arquitetura e mora na Penha, zona leste de SP. O estudante Pedro Pinheiro, 19, conta que estudar ali todas noites fez melhorar "imensamente" seu desempenho no cursinho para medicina.

Morador da Vila Carrão (zona sul), o auditor queniano Caleb Kamal, 27, frequenta a biblioteca de madrugada há cinco meses para ler e utilizar o wi-fi a fim de ligar para a sua família, no Quênia.

Jocinei, morador de rua que dorme no espaço, diz que aquele é um "lugar seguro" para ele, já que "a rua está muito perigosa". E reclama da violência com que é expulso por seguranças. A Folha apurou que a presença de moradores de rua à noite incomodou a gestão Doria.

"Não estou fechando a biblioteca por causa deles. Tem gente dormindo aqui de dia também. É uma medida pelo melhor funcionamento da biblioteca", diz Charles Cosac.

O diretor quer fazer uma parceria com a Secretaria de Direitos Humanos para lidar com a questão.

Bibliotecas públicas nos Estados Unidos trataram casos assim dando amparo aos moradores de rua –algumas fizeram programação voltada para eles; outras, como a de São Francisco, na Califórnia, contrataram uma assistente social para orientá-los.

"A missão de uma biblioteca é ser inclusiva sempre, com quem quer que seja. Se um morador de rua está dormindo, eu o guio para espaços da prefeitura onde pode fazer isso", diz Leah Esguerra, a assistente social da biblioteca americana, que recentemente também contratou uma equipe de ex-moradores.


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