Folha de S. Paulo


Crítica

Tese que não vinga torna 'Diário De Um Corpo' cheio de graça

AFP
O autor Daniel Pennac em 2007
O autor Daniel Pennac em 2007

DIÁRIO DE UM CORPO (muito bom)
QUANTO: R$ 49,50 (336 págs.)
AUTOR: Daniel Pennac
EDITORA: Rocco

A intenção declarada de Daniel Pennac é afastar o corpo do espírito, como se um livro pudesse ser escrito a partir das reações do corpo em detrimento daquilo que o próprio autor chama de "assaltos da imaginação".

Evidentemente que Pennac jamais lograria êxito na ambiciosa tentativa de separar a "matéria" que não somente dá liga à sua tese como sustenta o excelente "Diário de um Corpo" –sobretudo porque a matéria em questão é vulgarmente conhecida como "espírito".

É muito comum que bons escritores se amparem em teses exóticas, como se essas teses pudessem substituir o poder da narrativa, como se corpo e alma não fossem matérias de ficção.

Teses são apenas jogos de montar, ferramentas. Alguns levam isso tão a sério que seus livros se transformam em objetos enfadonhos, ilegíveis e, em alguns casos, geniais. Vide Georges Perec e seu "A Vida Modo de Usar".

No entanto, não é o caso de Pennac –ele não é o que místicos chamam de formalista!

O jogo de Pennac não se encerra na forma, mas no conteúdo. Ele apenas teve uma ideia que vendeu como tese, e que felizmente não vingou –para este resenhista, não.

Resulta que "Diário de um Corpo" é um romance divertido, cheio de humor e graça que percorre desde a primeira juventude do narrador até a decrepitude final, um livro cheio daquilo que o autor chama de "espírito".

Pennac sabe que os resenhistas, críticos e leitores se deslumbrarão com a engenhoca que armou, uma armadilha falsa. Quem não idealiza separar o corpo dos assaltos da imaginação? Quem não quer autonomia e segurança?

Diário De Um Corpo
Mo Daviau
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Difícil não chancelar e sucumbir ao filé mignon que nos oferece: "Nós morremos porque temos um corpo, e toda vez é uma cultura o que se extingue". Mas não é nada disso, ele não separou o corpo do espírito, apenas escreveu um livro excelente de memórias em forma de diário –e isso é exatamente o contrário de um corpo que se extingue.

Afinal, como separar os mamilos inchados da adolescência das consequências devastadoras de um câncer no final da vida? Impossível separar o corpo do espírito e da ficção, que tudo sela e imprime, tudo leva e tudo traz.


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