Folha de S. Paulo


Crítica

Beleza da coreografia de 'Avante, Marche!' está na cumplicidade

Um homem está para morrer de câncer e, antes de tirar sua vida, a doença ameaça tirar a sua voz e roubar sua função no grupo. O pequeno mundo dourado de uma banda de metais é o cenário onde se desenrola a micropolítica da "Avante, Marche!", do grupo belga Les Ballets C de la B.

O trombonista da banda (Win Opbrouck) não pode mais tocar seu instrumento por estar com um câncer na boca. Um músico mais jovem toma o seu lugar e o velho trombonista troca o protagonismo dos sopros pelo papel secundário de tocador de pratos.

Há uma aparente simplicidade na narrativa, um falso naturalismo do elenco no início de "Avante, Marche!", com as atrizes colocando cadeiras no palco para o ensaio da banda, ajeitando e puxando os vestidos quando se sentam para fofocar.

E soa quase natural o desabafo do trombonista doente, a voz que às vezes sai esganiçada (ah, o câncer), o bater dos pratos em acessos de raivas, o monólogo em que descreve a sua situação. O absurdo é o cotidiano.

A explicação é feita em várias línguas: inglês, italiano, holandês, espanhol. Sem legendas, mas dá para entender a história. A mistura de idiomas e linguagens (teatral, musical, coreográfica) também vai acontecendo naturalmente –é o esperado em espetáculos da Ballets C de la B, e é o que mais uma vez é entregue ao público.

Diz-se que as criações de Alain Platel, diretor da companhia, desafiam classificações, mas isso não chega a ser um desafio ao público de "Avante, Marche!" –em parte porque a tal transdisciplinaridade já é quase uma profissão de fé na dança contemporânea.

O principal, porém, é a forma com que Platel e Frank Van Laecke, co-diretor do espetáculo, vão levando o público pela mão: a audiência entende e reconhece a história de envelhecimento, perda, desejo e morte, e desvenda a linguagem corporal, mais explícita que as palavras –Platel estudou a fundo a língua de sinais dos surdos e afirmou que a linguagem gestual não permite mentiras.

Quando o verbal dá espaço aos corpos, movimentos e música, a narrativa ganha complexidade. A fragilidade dos corpos e da vida é exposta e se transforma. O trombonista claudicante acerta as contas com seus pares e afetos e se integra, pela última vez, na vibração do grupo.

"Toquem, toquem, se não estamos perdidos", grita o músico aos seus pares, ecoando a frase de uma das grandes influências de Platel, a coreógrafa alemã Pina Bauch: "Dancem, dancem, se não estamos perdidos".

A beleza da coreografia de Platel (que gosta de afirmar não ser coreógrafo) está na cumplicidade criada entre os indivíduos e o grupo, a troca entre corpos e histórias diferentes –o trombonista claudicante e obeso surpreende na leveza e agilidade com que desempenha um pas-de-deux com um jovem e atlético colega de palco. A morte, a saída de cena, está lá, mas não há melancolia: todos tocam e dançam, a vida não está perdida.

Avante, Marche!
QUANDO: qua (15) e qui (16) às 20h
ONDE: Theatro Municipal de São Paulo, pça. Ramos de Azevedo, s/ nº, tel. 11-3053-2100.
QUANTO: R$ 20


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