Folha de S. Paulo


Crítica

Ator espanhol dá novo alento para musical

É uma versão bastante diferente daquela de Trevor Nunn para a Royal Shakespeare Company, em codireção com John Caird. Seus nomes ainda estão no programa, mas apenas como adaptadores –do original parisiense para o espetáculo londrino que estreou em outubro de 1985 e continua em cartaz.

É mais sombria, menos heroica, de certa maneira mais contemporânea e adulta. Tanto o bem em Jean Valjean como o mal em Javert são agora menos pronunciados.

Já não é um pesado melodrama ao estilo do século 19, embora seus tipos sejam superficialmente os mesmos (herói, vilão, donzela em perigo, o alívio cômico com um casal subalterno etc.).

Muito disso se deve à presença do ator espanhol Daniel Diges como Valjean. É ele quem dita, quem mantém sob controle, de forma fascinante, não só a própria voz mas as demais ao redor e até as ações, como num redemoinho, quando está no palco.

Eleva e abaixa o tom e carrega com ele, seguro, a atenção do público. O curioso é que ainda tem –e parece que vai demorar para perder– uma pronúncia difícil de compreender e acompanhar.

O primeiro impacto causa estranhamento, mas é só ele cantar um pouco mais e a resistência desaparece. "Les Misérables", vale lembrar, é um musical "sung-through", cantado do início ao fim.

Sua caracterização, como Valjean, é ao mesmo tempo triste e firme, como se tomasse a própria vida como um sacrifício resignado. Os coprotagonistas com maior integração a seu personagem, nesta nova versão dirigida por Laurence Connor e James Powell, são o Javert de Nando Pradho, a Fantine de Kacau Gomes e a Éponine de Laura Lobo.

Não se trata mais do Javert malvado, mas de um homem cada vez mais em conflito consigo mesmo. Seu suicídio espelha de certa maneira o sacrifício de Valjean pela filha adotada, Cosette, mas é antes resultado de inadequação e angústia individual.

Prosseguem, por outro lado, as imolações quase rituais de Fantine pela mesma Cosette, sua filha natural, e de Éponine por seu amor não correspondido por Marius, nas barricadas de Paris.

Em tempo: "Les Misérables" é baseado em "Os Miseráveis", de Victor Hugo (Cosac & Naify, 1.974 págs.), e segue a trajetória de Valjean, foragido por décadas, perseguido pelo inspetor de polícia Javert. Ele acolhe Cosette, após a morte de Fantine, enquanto a França é tomada por tumultos revolucionários.

O jovem casal romântico de Cosette (Clara Verdier) e Marius (Filipe Bragança) é o que mais perde nesta nova versão, soando deslocado, superficialmente ingênuo.

Em contraste, o casal trapaceiro de Thénardier e sua mulher, que são interpretados de forma afetada e hilariante –e com os melhores figurinos da produção– pelos veteranos em musicais Ivan Parente e Andrezza Massei, também sobrevive a tudo, só que rindo do sacrifício alheio.

Na cena que talvez represente melhor a quase amoralidade abraçada pela nova encenação, os dois prometem continuar dançando quando já estiverem no inferno.

A criação histórica de Trevor Nunn jamais terá seu lugar questionado, mas este novo "Les Misérables" é talvez mais satisfatório para o público presente, com caracterizações menos heroicas. Até as barricadas de Paris, com bandeiras e a morte de jovens e uma criança, chocam –e arrebatam– bem menos.

O que fica como marca, do espetáculo que estreou na quinta (9), é a interpretação contida e ao mesmo tempo virtuosa do espanhol Daniel Diges, que serve quase como uma aula para os atores brasileiros de musical, para darem novo salto no gênero.

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LES MISÉRABLES

QUANDO qui. e sex., às 21h; sáb., às 16h e 21h; dom., às 15h e 20h; até 30/7

ONDE Teatro Renault, av. Brigadeiro Luís Antônio, 411, tel. (11) 4003-5588

QUANTO R$ 50 a R$ 330

CLASSIFICAÇÃO livre

AVALIAÇÃO muito bom


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