Todo mundo sabe que para testar sua nova máquina os inventores do cinema registraram chegadas de trens, passantes e a visão concreta do movimento da vida.
Logo depois, outros pegaram a câmera com a intenção de mostrar o que os olhos não veem, as transfigurações, as percepções alteradas, as fantasmagorias.
É essa tensão original do cinema que ressurge em "Personal Shopper".
Divulgação | ||
A atriz Kristen Stewart, que interpreta Maureen, que busca algum contato com seu irmão gêmeo |
O diretor Olivier Assayas é um cineasta cinéfilo. Foi um crítico de cinema arguto antes de passar a dirigir e vem construindo uma obra que interpela a tradição. Sua cinefilia manifesta-se também no desejo de filmar movido por uma questão central: o que pode o cinema?
"Personal Shopper" não tenta uma resposta acabada, prefere testar a crença do espectador no visível. Por isso, pode parecer frustrante e malsucedido.
O filme decepciona os que buscam o encantamento da imagem, o fascínio da beleza que a moda e a publicidade produzem incessantemente.
Ao contrário, o objeto de "Personal Shopper" é, antes, seu desencantamento. O que pode o cinema num mundo em que a imagem se tornou a medida de todas as coisas? Se nossa realidade é predominantemente virtual, como filmar essa desmaterialização?
Basta andar nas ruas para verificar que a atenção da maioria não se detém no que as cerca, mas nas telas. Seguindo essa tendência, Assayas transfere a sequência central do filme para um celular, transpõe toda a ação para mensagens instantâneas e alcança um resultado tanto realista como abstrato, cinema contemporâneo e, simultaneamente, filme mudo.
Por sua vez, Maureen (Kristen Stewart) não tem nenhuma vida própria. Sua principal ocupação é escolher roupas para Kyra, uma celebridade cuja presença no filme não passa de aparição.
Enquanto desempenha a tarefa, a sensitiva Maureen contato de seu irmão gêmeo, que morreu subitamente. Aqui também importa a presença de duplos, figuras que reprojetam a existência de Maureen.
Nesse sentido, "Personal Shopper" é um filme duplo do longa anterior de Assayas, "Acima das Nuvens", no qual uma atriz madura em crise encontrava sustento na relação com a assistente, já interpretada por Kristen Stewart.
Enquanto "Acima das Nuvens" filia-se a gêneros duplos, ao mesmo tempo drama psicológico bergmaniano e filme de vampiros, "Personal Shopper" sobrepõe o thriller psicológico e histórias de fantasmas.
Não menos importante é a escolha de Kristen Stewart como protagonista. Não se trata apenas de um desejo cinéfilo de libertá-la da imagem de Bella, arrancar-lhe a aura de mocinha presa do universo vampiresco da saga "Crepúsculo".
"Personal Shopper" se constrói em torno do corpo de Stewart, de sua indeterminação andrógina no início à sobreposição da feminilidade por meio das roupas na segunda parte.
Por essas e outras, "Personal Shopper" é para se assistir com os olhos bem abertos.