Folha de S. Paulo


Após internação, maestro João Carlos Martins planeja futuro de sua carreira

Passava uma carruagem levada por cavalos pretos, da qual o cocheiro estendia sua mão como se ofertasse uma carona. João Carlos Martins, na época um jovem pianista de 26 anos, negou o convite para o passeio.

Trata-se da única lembrança –ou alucinação– remanescente dos dois meses que ele ficou em coma ao ser acometido por uma embolia pulmonar em 1966, em Berlim.

Ele havia acabado de sofrer e superar, em partes, o primeiro de uma série de acidentes que o desafiariam a seguir a carreira como pianista [em uma partida de futebol no Central Park, em Nova York, meses antes, um tombo fez com que ele rompesse um nervo e atrofiasse a mão].

Meio século e mais de duas dezenas de cirurgias depois, Martins, hoje mais maestro do que pianista, aos 76 anos, foi novamente surpreendido por uma embolia pulmonar.

Ele conta que ensaiava uma sinfonia de Gustav Mahler na última segunda (23), quando a dor que sentia na perna direita desde o dia anterior começou a se agravar.

Do seu leito no hospital Sírio-Libanês, onde ficou internado desde terça (24), ele afirma que chegou à mesma conclusão nas duas situações que quase lhe roubaram a vida: "Ainda tenho muito o que fazer, quero deixar um legado".

Foi do mesmo local que assistiu, "com lágrimas nos olhos", à partida em homenagem ao time da Chapecoense, na quarta (25), ocasião na qual teria tocado o hino nacional.

Martins recebeu alta neste sábado (28), a tempo de se apresentar com o pianista Arthur Moreira Lima na próxima quinta (2/2), no Citibank Hall, em São Paulo. O concerto recupera a turnê que a dupla promoveu nos anos 1980, tocando Bach e Chopin.

"É lá que eu vou saber se é fim ou começo", diz o maestro sobre a possibilidade de persistir como pianista.

Essa será sua primeira apresentação após passar, no início deste mês, pela última cirurgia com o objetivo de recuperar os movimentos das mãos –razão que o levou à maioria das 23 operações que já fez. "Será o dia D."

MISSIONÁRIO

Martins diz que não se lembra de quando começou a tocar, mas foi logo na infância que encontrou sua "missão".

Certa vez, quando lhe perguntaram se achava difícil tocar piano, ele conta que respondeu ser "ou fácil ou impossível", ao que teria ouvido de seu pai para nunca mais repetir a frase.

"O dom de Deus é 2%, o restante é a disciplina. Você saiba que um pianista é um missionário e um missionário tem que ter humildade antes de tudo", disse o pai, de acordo com a memória do filho.

À frente da Fundação Bachiana, Martins coordena projetos com cerca de 6.700 crianças e pretende tirar mais um do papel, o Orquestrando São Paulo, em que promove aulas semanais à distância e encontros presenciais com maestros de capelas de cidades do interior do Estado.

VIDA NO CINEMA

Mais implausível do que a ficção, como frisou certa vez o "New York Times", a vida do maestro ganhará as telonas em uma produção prevista para estrear em 7 de maio.

Martins garante que a parte musical da cinebiografia, dirigida por Mauro Lima e estrelada por Alexandre Nero, será só de gravações originais.

Um dos títulos sugeridos para a produção é "A Música Venceu", chavão do maestro.

Após tantas adversidades –passando por lesões por esforço repetitivo (LER) a uma agressão em assalto na Bulgária–, Martins não sabe precisar se tem sorte ou azar. "Eu só sou um pianista que perdeu as mãos para o piano."


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