Folha de S. Paulo


MC Beijinho saiu da delegacia para o topo das paradas com 'Me Libera Nega'

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Pouco depois do meio-dia de 18 de novembro de 2016, um policial abriu o porta-malas de uma viatura soteropolitana. Suando lá dentro, o detido Ítalo Gonçalves, 19, achou que suas preces tinham sido atendidas: uma equipe de TV o esperava ao lado dos policiais.

Minutos antes, Ítalo havia sido preso por roubar dois celulares em frente a uma praia de Salvador, armado com uma faca. No carro, com três policiais, Ítalo desatou a cantar a música que compôs há três anos: "Me libera, nega, deixa eu te amar...".

Ouviu "cala a boca" de um deles. Outro, achando o rapaz curioso, telefonou a um repórter do jornal local "Balanço Geral", da Record TV, um frequente líder de audiência naquele horário de sol a pino.

Ágil, a equipe do programa alcançou a viatura ainda no caminho para a delegacia. "Suspeito teria roubado celulares de jovens em Piatã", dizia a legenda da reportagem. Tudo ao vivo.

Na DP, o repórter Marcelo Castro estendeu o microfone ao suspeito:

â€“É cantor, é? É artista?

Ítalo, visivelmente drogado, parecia se divertir. Fazendo biquinho, sorrindo, desenvolto como quem vai a um show de calouros, soltou a voz: "Ô, me libera, nega, novinha, vou te sentir".

Em outro canto da cidade, a avó de Ítalo ouviu a cantoria pela TV enquanto clientes almoçavam no restaurante de cadeiras de plástico que a família mantém há 12 anos no bairro da Liberdade.

A senhora chorou, preocupada com a sorte do neto preso. Mas seu filho Anderson, o tio que ensinou Ítalo a cantar, vendo que o repórter incentivava o rapaz, a acalmou: "Calma, mãe, que isso aí vai fazer é sucesso".

O tio acertou. Ítalo foi solto dois dias depois e ganhou seus primeiros 15 minutos de fama como MC Beijinho, dono de um dos hits do verão 2017 –um verão em que as notícias dão conta de uma sangrenta crise no sistema penitenciário, com guerras entre facções.

Ítalo provavelmente ainda estaria atrás das grades não fosse uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em vigor desde 2016, que garante a todo preso uma audiência de custódia com um juiz em até 48 horas.

Bruno Shimizu, doutor em direito penal e coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, conta que, antes dessa decisão, entre 85% e 90% dos presos ficavam em prisão preventiva sem julgamento. Essa é, ele diz, uma das razões do esgotamento do sistema penitenciário.

O novo cantor acabou em outra estatística: os 61,52% que a Justiça baiana decidiu manter em liberdade provisória após as audiências de custódia.

ARMAÇÃO?

O delegado José Neles, que lavrou a ocorrência, contou não ter notado agressividade em Ítalo. Diferente de outros garotos que passam por sua delegacia, aquele (altura: 1,90, cabelos: pretos, olhos: castanhos, cabelo: carapinha, barba: imberbe) não dizia ser de uma facção. Em vez disso, cantava "Me Libera Nega" sem parar nas 48 horas em que ficou detido –para desespero dos agentes.

O comissário é um homem alto e bem humorado, com cabelos lisos cuidadosamente penteados para trás. Puxa a ficha de Ítalo no sistema da Polícia Civil: há outra ocorrência, de 2015, quando comeu em um restaurante e saiu sem pagar.

ASCENSÃO DE UM HIT

Sobre o roubo dos celulares, José Neles tem uma pulga atrás da orelha: "Ele nem tentou fugir...". Teria sido uma armação para aparecer na TV?

Ítalo sempre gostou do "Balanço Geral" e sabia que atrações musicais costumam ganhar espaço no telejornal policialesco da Record. Mas, naquele dia, ele queria os celulares "dos dois gadinhos [vítimas]" para trocar por entradas para ver a banda República do Reggae, segundo afirmou à Folha.

Estudante do terceiro ano do ensino médio, Ítalo ganhava a vida enrolando cabelos (R$ 5 cada) e armando barracas para camelôs na Liberdade (R$ 20 o dia) –que agora, numa impagável virada do destino, vendem CDs piratas de seu improvável hit.

ATRÁS DO TRIO

Em Salvador, o título de "sucesso do Carnaval" se disputa nas ruas. Artistas espalham outdoors autoproclamando a sua canção como a música da temporada. Alguns alardeiam nos cartazes o número de visualizações que conquistaram na internet.

O clipe de "Me Libera Nega" de MC Beijinho foi visto mais de 1,8 milhão de vezes no YouTube. Fechou a semana de 20 de janeiro entre as cinco mais tocadas nas rádios da cidade.

Me Libera, Nega

A música ganhou elogios até de Daniela Mercury. "A letra é bonita, a melodia é linda –parece MC em cima da base do Olodum. E tem a história dele, pedindo para ser liberado dentro do camburão", diz a cantora à Folha.

E, adivinhe só, de Caetano Veloso, que disse amar a composição e a tocou nos dias 20 e 21 na Concha Acústica de Salvador, acompanhado pela cantora Teresa Cristina.

Antes, a canção havia sido abraçada pelo compositor Filipe Escandurras, autor de hits de outros carnavais, como "Lepo Lepo". Por intermédio de seu empresário Zé Eduardo –também apresentador do mesmíssimo "Balanço Geral"–, Escandurras conheceu Ítalo.

Passo seguinte: Filipe Escandurras e Ítalo gravaram "Me Libera Nega" (um balanço desse trabalho no estúdio foi apresentado em reportagem exibida pelo... "Balanço Geral").

A parceria, entretanto, não vingou. Segundo Chico Kertész, atual empresário de Beijinho, Escandurras quis 30% dos direitos autorais por incluir novos versos. Escandurras nega que tenha discutido contrato.

Seja como for, Ítalo assinou no mês passado com duas gigantes mundiais: Universal e Sony.

'CAETANEOU'

MC Beijinho ainda não fez nenhum show solo. Há empecilhos: ainda cumpre medidas cautelares, não pode sair de Salvador, precisa se recolher à noite e não frequentar bares. Seu advogado –Sebastian Mello, que o atende de graça a pedido do empresário, Chico Kertész– pede autorização a cada vez que precisa promover o novo artista.

Como em 3/2, quando deve ir ao Rio para um programa ao vivo no canal Multishow ao lado de Cláudia Leitte. Já conseguiu, porém, ouvir uma multidão cantar sua música quando Caetano Veloso interpretou "Me Libera Nega" na Concha Acústica, em Salvador, há uma semana.

"Agora caetaneou", ele dizia à Folha, radiante e incrédulo, em meio a uma saraivada de selfies com novos fãs. Daniela Mercury, inclusive. MC Beijinho foi a estrela da plateia no show do "papai da música", como ele chama Caetano (uma das 36 músicas que já compôs na vida foi dedicada ao astro tropicalista).

Divulgação
Regina Casé, MC Beijinho, Caetano Veloso e Daniela Mercury: beicinhos na pré-estreia do filme 'Axé', em Salvador
Regina Casé, MC Beijinho, Caetano Veloso e Daniela Mercury: beicinhos na pré-estreia do filme 'Axé'

Ítalo não toca nenhum instrumento. Está estudando agora com Alfredo Moura, maestro e professor da Universidade Federal da Bahia, que Kertész acionou para fazer os novos arranjos.

Moura trabalha em casa, em um quarto onde ostenta quadros com discos de platina por orquestrar o disco "Feijão com Arroz" (1996), de Daniela Mercury, um dos tantos trabalhos em que ajudou a forjar a música baiana dos 1990.

"Ítalo tem o sucesso do Carnaval, indiscutivelmente. O que todo mundo mais quer é chegar naquele momento dionisíaco e ser a música que o povo quer", diz o regente.

Moura argumenta que o som de Beijinho gira em torno de 70 batidas por minuto, como "a música que vem da rua, que não tem instrumentos". Por isso, gruda fácil.

As raízes de "Me Libera Nega" remontam há três verões. O alvo era a amiga de uma prima de Ítalo, que saiu do Rio para passar férias em Salvador. "Rapaz, essa menina me deu inspiração até para música. Cantei uma música fácil, que qualquer um poderia cantar. Não falava de muita coisa, de muito contexto, como céu, estrela. Era um beijo, eu brincando e pedindo mais."

De tanto pedir beijo, cantando nas ruas com o violão de brinquedo do irmão de dois anos, o apelido Beijinho colou.

A versão de "Me Libera Nega" que circula desde 27 de dezembro foi produzida por Chico Kertész às pressas. Kertész é um influente publicitário na cidade: sua família é proprietária do jornal e da rádio Metrópole, ele é filho de ex-prefeito e diretor do documentário "Axé", em cartaz em SP.

Conheceu o novo artista ao entrevistá-lo para um possível filme. O empresário estima ter investido R$ 50 mil em Beijinho, contratando profissionais para colocar a carreira e a vida dele nos trilhos. Prevê recuperar os custos vendendo shows.

HAVIA UMA PEDRA

Ítalo ainda não recebeu nada pelo sucesso, segundo sua mãe, Lindinalva Gonçalves. O lucro da música em plataformas como Spotify e YouTube é dividido com as gravadoras, num sistema considerado pouco transparente por músicos em geral. Empresários do ramo estimam que, a cada um milhão de visualizações no YouTube, o artista leva US$ 1.000 menos os impostos.

A família batalha no restaurante. Ítalo, desde novembro, não anda sozinho. Dorme numa clínica de recuperação gratuita, mantida por um pastor. Ele teme cair em desgraça caso volte ao bairro onde mora. A família conta que, desde agosto, ele experimentava crack. À polícia, o rapaz disse que fumava apenas maconha.

Das 36 músicas de Beijinho, uma delas é sobre a pedra –aquela da Bíblia, com que Davi conseguiu matar Golias.


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