Folha de S. Paulo


Masp faz 70 anos com mostra em que convoca artistas para pensar a Paulista

"Quando você vê a coisa meio no osso, o esqueleto dela, é estranho mesmo", diz a artista Lais Myrrha, no alto da ruína em plena Paulista que um dia será o anexo do Masp. "Dá um pouco de medo, de vertigem subir essas escadas sem guarda-corpo."

Mas também impressiona. Lá em cima, uma estranha geometria de vigas, lajes e colunas em erosão emoldura vistas insuspeitadas da avenida mais famosa da metrópole e também da cobertura do museu ao lado, suas pernas de concreto vermelho plantadas firmes no asfalto como um monstro de ângulos retos.

De olho ao mesmo tempo no passado, no presente e no que pode ser o futuro de um dos espaços mais emblemáticos de São Paulo, Myrrha está rodando nos escombros do velho edifício Dumont Adams um filme para a mostra que o Masp abre em fevereiro, dando início à celebração de suas sete décadas de existência.

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Fotografia de Roberto Keppler, que estará em mostra sobre a avenida Paulista no Masp
Fotografia de Roberto Keppler, que estará em mostra sobre a avenida Paulista no Masp

Mesmo inaugurado no centro da cidade em 1947, o museu se firmou no imaginário e na memória paulistana como a plataforma envidraçada que Lina Bo Bardi fez pairar sobre a Paulista, daí a ideia de escalar uma série de artistas contemporâneos para destrinchar o significado dessa avenida ao mesmo tempo bela e bruta.

"Minha ideia era pensar isso aqui como um microcosmo", diz Myrrha. "A Paulista é um centro financeiro, de poder, de negócios, de coisas importantes, e o filme estende esses tentáculos."

Na verdade, parece neutralizar essas dimensões. Em seus planos hiperfechados de quinas, degraus e lajes, Myrrha constrói um caleidoscópio concretado, asfixiando o olhar. Na visão dela, é uma síntese das arquiteturas desorientadoras de um país suscetível ao calor da hora".

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Fotografia de Carlos Fadon, que está em mostra sobre a avenida Paulista no Masp
Fotografia de Carlos Fadon, que está em mostra sobre a avenida Paulista no Masp

O mesmo cinza e a mesma urgência que dominam os planos de Myrrha ressurgem nas placas de cimento que André Komatsu vai levar ao museu, formando uma espécie de bandeira no chão a partir de moldes que fez de dois momentos das calçadas da Paulista, das pedras portuguesas aos sulcos do piso mais recente, que guiam pedestres cegos.

Komatsu cristaliza dois tempos da história, transformados ali em lembranças frágeis sob os pés do público, que vai caminhar sobre a escultura.

"Entendo isso como preservar a arqueologia contemporânea, a história do cotidiano", diz o artista. "É uma resistência aos processos de mudança de um lugar fundado pela aristocracia e que acabou virando um palco de manifestações populares."

Danilo Verpa/Folhapress
Antigas luminárias da avenida Paulista que farão parte de obra do artista Daniel De Paula
Antigas luminárias da avenida Paulista que farão parte de obra do artista Daniel De Paula

FLORES ESTRANHAS
Outro artista da mostra, Daniel De Paula também ancora seu trabalho na visão da avenida como palco, mas olhou para o alto em vez do chão. Obcecado pelo jogo de luzes e transparências da arquitetura do Masp, ele descobriu que a Paulista é a avenida mais iluminada de São Paulo e foi buscar antigas luminárias e postes que já funcionaram como holofotes do movimento ali.

Num depósito da prefeitura na Mooca, De Paula encontrou as flores estranhas que vai usar na sua instalação. Os braços de lâmpadas dos postes que iluminavam a Paulista até seis anos atrás são chamados de pétalas no jargão metalúrgico. Empilhadas num terreno alagado, elas enferrujam ao relento, mas vão ganhar vida nova no Masp.

"É uma flor encontrando a outra, formando um padrão geométrico no chão", diz o artista. "O que me interessa é saber que esse objeto testemunhou muitas coisas que aconteceram na avenida, que é um espaço complexo. Tem as manifestações pró-impeachment, atos contra o golpe, moradores de rua, sedes de bancos, tudo no mesmo lugar, numa disputa de narrativas."

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Cena de filme de Lais Myrrha que está em mostra sobre a avenida Paulista no Masp
Cena de filme de Lais Myrrha que está em mostra sobre a avenida Paulista no Masp

Essas disputas, aliás, parecem ganhar em ressonância e voltagem no palco incandescente que se tornou a Paulista. Na visão de Marcelo Cidade, também escalado para a exposição, a avenida funciona como vitrine, uma arena onde os conflitos vêm à tona e moldam relatos na mídia.

Sua instalação, no caso, será também uma espécie de espaço de vendas, um cubo com duas laterais de vidro mostrando um acúmulo de estruturas usadas pelo comércio formal e informal da avenida, das barracas de pastel às mesinhas de artesanato hippie.

No centro de tudo, em destaque, estará um ovo vazio, uma alusão ao fetiche das galerias de arte de criar espaços brancos e neutros, distantes da realidade suja da cidade.

"É a subversão dessa ideia de vitrine mesmo", diz o artista. "Quis criar um espaço fechado, dando a ilusão de que a pessoa do lado de fora deseja o que está lá dentro, esses elementos que carregam uma identidade urbana. Isso inverte uma hierarquia de poder."

Outra inversão da ordem está na série de fotografias de Mauro Restiffe, que retratou em chave mais calma os apartamentos com vista para a Paulista. "O ambiente doméstico é uma válvula de escape", diz o artista. "É um refúgio da intensidade da avenida."

Mas basta abrir as janelas, que as luzes da cidade inundam salas de estar -da mesma forma que se multiplicam nas galerias etéreas do museu.

AVENIDA PAULISTA
QUANDO abre em 16/2, às 20h; de ter. a dom., das 10h às 18h; qui., até 20h; até 28/5
ONDE Masp, av. Paulista, 1.578, tel. (11) 3149-5959
QUANTO R$ 30, grátis às terças


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