Folha de S. Paulo


Ver filmes clássicos no iPhone funciona, mas não é experiência plena

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Cinema: o ator Charles Chaplin em cena do filme
Charles Chaplin no filme "Tempos Modernos" (1936), dirigido por ele mesmo

"As pessoas que assistem a filmes no telefone merecem ser fuziladas, especialmente se se acham no direito de deixar comentários críticos válidos no IMDB", disse a crítica Anne Billson no Twitter em dezembro. Cito suas palavras não para repreendê-la ou cobrar qualquer coisa, mas para mostrar como é intensa a polêmica sobre as plataformas e os formatos.

Já escrevi sobre a condenação de David Lynch, há mais de dez anos, pela "Simples Ideia de se Assistir a um Filme no Telefone". Nos mais de cem anos de história do cinema, novas maneiras de assistir a filmes sempre incomodaram as pessoas. De certo modo, essa é a única coisa que perturba os homens do dinheiro e os criadores em medida mais ou menos igual.

Steven Spielberg hesitou inicialmente em deixar suas obras saírem em fita cassete ou DVD, dizendo que os cinemas são espaços sagrados e coisas do gênero. Martin Scorsese foi mais otimista, escrevendo em 1989: "Ter acesso instantâneo a filmes, poder pegar um filme e vê-lo na hora que você quer, é ótimo". Boa parte do trabalho de sua organização sem fins lucrativos para a restauração e preservação de filmes, a Film Foundation, é disponibilizada em sua versão doméstica, com preferência por formatos de alta definição.

Mesmo assim, assistir a filmes no smartphone é para muitos a última linha de resistência, se bem que os serviços de streaming sejam obrigados a ignorá-la. A ideia toda de um serviço de streaming é que ele disponibiliza conteúdos para serem vistos em aparelhos diversos, desde telas grandes até tablets, Nooks, Kindles, Galaxies ou iPhones. Adquiri meu primeiro iPhone recentemente, em boa medida para poder acessar vários serviços de streaming (e também porque estava ficando farto de todo o mundo me perguntar "por que você ainda anda com esse BlackBerry?").

Achei que seria interessante ver alguns filmes de cem anos atrás de Charlie Chaplin no aparelho. Afinal, quando Chaplin criou seus curtas para a Keystone e a Essanay, no início do século 20, eles não eram necessariamente exibidos nas "catedrais" das quais Spielberg falou, mas em cineminhas pequenos e modestos e em versões encurtadas feitas para mutoscópios, aparelhinhos para um espectador apenas, acionados com a colocação de moedas.

(Vale notar que, segundo "A Million and One Nights", de Terry Ramsaye, uma história do cinema escrita em 1926, o fundador do cinema americano, Thomas Edison, "pensava que filmes não deveriam ser projetados sobre uma tela. Desde o começo, ele foi contra a criação de uma máquina de projeção, defendendo sua posição até a hora em que a indústria dos filmes foi tirada de seu controle, na prática.")

O Criterion Channel, parte do novo serviço de streaming FilmStruck, oferece curtas de Chaplin em levas, sendo cada compilação com duração de um longa referente a um período particular, além de ser bem restaurada.

Os filmes ficam ótimos no iPhone; suas cores, preto, branco e ocasionalmente sépia, são boas e nítidas, e a ação é mais que coerente. Com cerca de 14 minutos de duração, cada curta é bem adequado ao período curto de atenção que tende a ser praxe quando seguramos um iPhone na mão.

Mas isso talvez seja uma coisa de gerações. Em um bate-papo com Philip Becker, presidente da Criterion Collection, ele reconheceu que nunca assistiu a um longa-metragem do começo ao fim num telefone. Eu tampouco. Assisti a trechos, aqui e ali. Com o perdão de David Lynch, vi um pouco de seu "Eraserhead" no iPhone e achei que também ficou muito bom —os contrastes da fotografia em preto e branco conferiram às imagens uma aparência quase de 3D.

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O ator Jack Nance, em cena do filme 'Eraserhead
O ator Jack Nance, em cena do filme 'Eraserhead'

Como todos os serviços de streaming que já testei, com a exceção do YouTube, o FilmStruck sempre exibe os filmes na posição horizontal do telefone; quando você vira o aparelho para sua posição vertical normal, acaba assistindo à imagem inteira de lado.

No dia em que eu quis ver como funcionava o site Mubi no meu smartphone, seu "Filme do Dia" era "Canção de Amor" (1954), de Jean Genet, uma fantasia homoerótica de meia hora de duração várias vezes censurada ao longo dos anos. Como o filme frequentemente foi visto como "samizdat" [relato de circulação clandestina na época soviética], houve uma transmissão incomum de sentimento subversivo quando o vi.

Passando adiante, procurei alguns dos materiais clássicos de Hollywood no Netflix e voltei a ficar impressionado com a nitidez generalizada. De certa maneira, é uma ilusão: a resolução de vídeo em um iPhone é mais semelhante à de um DVD padrão que a um Blu-ray ou vídeo em 4K. Mas o aparelho incorpora a tecnologia Wide Color semelhante à das telas 4K, de modo que as cores em um produção em formato VistaVision, como "Natal Branco" (1954) ganham grande destaque.

É claro que a qualidade do áudio nem merece ser comentada: com os alto-falantes pequenos do telefone e os fones providenciados, o máximo que se pode dizer é que dá para ouvir os diálogos e a música. Essas limitações explicam em parte porque "Eraserhead" ainda não existe como experiência plena em um aparelho como o iPhone: o som meticulosamente definido é crucial nesse filme.

Becker disse que a Criterion e sua empresa irmã, a distribuidora Janus Films, consideram as salas de cinema cruciais para seu trabalho (ele notou que a Janus lançou mais filmes no cinema em 2016 que em qualquer ano anterior).

"Isto dito, sou contra a ideia de 'sacrilégio', historicamente", ele insistiu. "Sou cético em relação à visão purista; há muito a ser dito em favor de nos aventurarmos. E acho que, graças à acessibilidade maior, a cultura do cinema anda mais vibrante do que estava havia décadas."

"Uma das coisas que mais nos entusiasmou foi criar suplementos para os filmes no Criterion Channel", ele disse, "porque esses produtos serão pequenos o suficiente para serem desejáveis para ser vistos no telefone."

Charles Tabesh, vice-presidente sênior de programação e produção da Turner Classic Movies e da FilmStruck, é da mesma opinião. "Precisamos acompanhar o modo como as pessoas andam assistindo a filmes", ele disse.

Tradução de Clara Allain


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