Folha de S. Paulo


Contra censura, gravação do 'Poema Sujo' foi contrabandeada por Vinicius

Ferreira Gullar, morto na manhã deste domingo (4), aos 86 anos, publicou em 1975 "Dentro da Noite Veloz", um dos mais importantes livros de poesia da década; foi nesse ano também que compôs o "Poema Sujo", seu poema mais conhecido e ícone da resistência à ditadura.

O momento não era exatamente propício à publicação de poesia no país —a nova poesia brasileira passava a ser divulgada na praia, em edições caseiras, impressas a mimeógrafo (sistema de reprodução a álcool). E foi num meio heterodoxo —uma fita cassete levada de Buenos Aires na mala do poeta Vinicius de Moraes, em abril de 1976— que um dos grandes poemas brasileiros da década de 70 chegou aos leitores.

Quem definiu o impacto daqueles 40 minutos de gravação foi o portador da fita, que não mediu palavras para descrevê-lo em carta para o amigo Calasans Neto: "Cem páginas da mais alta poesia; um troço, pai, de arrepiar os cabelinhos do cu". Gullar, exilado, e Vinicius, em turnê com Toquinho e Miúcha, agitavam as baladas dos brasileiros exilados na Argentina. Foi numa dessas festinhas regadas a caipirinha e feijoada que o maranhense leu o "Poema Sujo" para os amigos. "A emoção foi tanta, quando ele o leu para nós, que quase todo mundo chorava", lembraria Vinicius.

Gullar dava uma resposta ao clima de repressão que dominava a América Latina, explicou Vinicius: "A oportunidade do poema é total, para mostrar a esses cínicos de merda que a poesia, longe de ter morrido, está mais viva do que nunca, quando agarrada assim pelos cornos por um verdadeiro poeta." Ainda em 1976, o "Poema Sujo" seria publicado em livro pela Civilização Brasileira, num lançamento apinhado, mas sem a presença do autor.

Escaldado pelo golpe no Chile, Gullar percebeu sua permanência na Argentina se tornava cada vez mais arriscada. O país vizinho já estava sob sua mais sangrenta ditadura: num episódio jamais elucidado, naquela mesma temporada o pianista de Vinicius, Tenorinho, acabaria sendo sequestrado por agentes da repressão ao sair para comprar cigarros - seu cabelo e suas roupas bastaram para que se tornasse alvo da direita radical, entrando para a conta dos "desaparecidos" políticos da ditadura que se instalava na Casa Rosada.

Afastado pelo regime militar de sua carreira no Itamaraty, Vinicius tornou-se um embaixador de Gullar e de seu poema: promoveu audições da fita em sua casa no Rio, convidando Chico Buarque, Francis Hime, Tom Jobim, Carlos Heitor Cony, Ênio Silveira e quem mais pudesse ajudar a divulgá-lo. Fez publicar o livro em espanhol, cavou reportagens e entrevistas com o autor. A agitação promovida por Vinicius era uma deixa para que Gullar tentasse voltar ao Brasil - seria bem menos arriscado, naquele momento em que mal se esboçava a abertura política, chegar acompanhado de uma estridente claque, cobertura da imprensa, festejos e quanto barulho fosse possível fazer.

A missão diplomática em favor de Gullar também contou com a ajuda dos jornalistas Zuenir Ventura e Elio Gaspari. Diretor-adjunto na "Veja", Gaspari, lembraria Gullar, deu ao homem forte do governo, o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Militar da Presidência da República, um exemplar do recém-publicado "Poema Sujo". "Golbery achou-o obsceno, mas nem por isso se opôs à minha volta ao país", recordaria Gullar. "Já o general João Figueiredo, chefe do SNI, era de opinião diferente. 'Não quero esse comunista aqui', teria declarado ele, segundo Golbery."

No embalo do "Poema Sujo", do sinal verde de Golbery e de sua absolvição no processo policial-militar que o levara a deixar o Brasil, Gullar decidiu se arriscar a retornar -não sem tomar algumas precauções, como convocar a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Sindicato dos Jornalistas para acompanhar seu desembarque. "Essas medidas visavam despojar o meu gesto de qualquer traço conspiratório ou clandestino, neutralizar a ação arbitrária dos órgãos de repressão e, ao mesmo tempo, responsabilizar o governo pelo que ocorresse", explicaria o poeta em suas memórias.

Alardear o retorno nas maiores revistas de São Paulo e do Rio também fez parte da estratégia. Uma entrevista que Rui Lima publicou nas "Páginas Amarelas" da "Veja" ajudou a pavimentar o caminho de volta, apresentando os argumentos conciliatórios do poeta: "Gullar nunca foi um asilado - saiu legalmente do país e legalmente vai voltar, inclusive porque foi absolvido por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal no processo dos intelectuais, em 1974. Vários motivos o trazem de volta, além do fato de 'não suportar mais viver fora do Brasil'-entre eles um filho doente que sempre reclama sua presença, no Rio". Carlos Heitor Cony o entrevistou para a "Manchete".

Poema Sujo - Poesia
Ferreira Gullar
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Por volta de oito horas da noite do dia 10 de março de 1977, o poeta pousou no aeroporto do Galeão, no Rio. "Ao chegarmos ao guichê da polícia, onde devíamos apresentar os documentos, vi escrito numa folha presa à parede: 'Ferreira Gullar ou José Ribamar Ferreira - detê-lo". Recebido por uma multidão de amigos e jornalistas, não foi detido - mas no dia seguinte seria intimado pela Polícia Marítima. Passou o fim de semana nas mãos de policiais, foi levado de um porão da repressão para outro, tiraram-lhe a roupa e o pressionaram a responder sobre "a escola de subversão" que frequentara em Moscou. Foi libertado após uma forte mobilização de amigos.

Pouco depois, ao pedir a seu advogado que sacramentasse no Superior Tribunal Militar a extinção do processo movido contra si, Gullar descobriu que, nos autos, o José Ribamar Ferreira procurado era outro: um líder camponês, também maranhense, que, ao contrário do seu homônimo poeta, abraçara a luta armada.

PAULO WERNECK é editor e ex-curador da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty)


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