Folha de S. Paulo


Crítica

Textura da selva emerge da vigorosa fabulação de Kipling

Criticado por representar o ideal imperial britânico, Rudyard Kipling foi também aquele que primeiro revelou aos conterrâneos a existência epidérmica de suas colônias indianas. Se suas posições políticas pesaram negativamente sobre sua recepção crítica, é inegável o alcance de sua influência sobre o imaginário de fins do século 19 e começo do 20. O sucesso rendeu-lhe proximidade com figuras poderosas, entre elas o rei George 5º.

Borges, que amava declaradamente sua literatura e relia seus livros de maneira obsessiva, lembra que Kipling era um dos únicos autores ocidentais capazes de escrever manejando com naturalidade o dicionário inteiro. Nascido em Bombaim em 1865, sua língua materna foi o hindi, com o qual conservou a relação de intimidade até o fim da vida.

Os textos que compõem "Os Livros da Selva" foram publicados entre 1894 e 1895 de maneira esparsa, antes de serem reunidos em uma única edição. No entanto, trata-se ainda de um corpus instável, pois há muitas edições que desmembram os dois livros, além dos volumes simplificados impulsionados pela adaptação Disney de 1967.

No Brasil, só em 2015 foi lançada uma edição completa, pela Companhia das Letras. Pela editora Zahar, sai uma com 28 ilustrações do próprio autor e de W.H. Drake, na ótima tradução de Alexandre Barbosa de Souza.

Divulgação
Ilustração de J.L. Kipling para
Ilustração de J.L. Kipling para "Os Livros da Selva", de seu filho, Rudyard Kipling

São 15 contos, muitos voltados para a figura e a vida de Mowgli, o menino criado por um casal de lobos na selva indiana. Essas ficções, que incluem também poemas narrativos, cristalizam e espelham inquietudes que mobilizaram a cultura do final do século 19, dialogando com outras figuras do "homem natural", como Tarzan, Kaspar Hauser e Victor l'Aveyron.

Na época da escrita dessas histórias, circulavam na Grã-Bretanha notícias sobre sete casos de meninos-lobos encontrados nas colônias. No contexto de publicação, pesava igualmente a literatura científica dos viajantes naturalistas, como Charles Darwin.

É inegável o caráter moral da narrativa do menino criado na alcateia de Seeonee, o que levou o livro a ser adotado como inspiração para o movimento dos escoteiros-mirins por um amigo de Kipling, o tenente e escritor britânico Robert Baden-Powell.

No segundo livro, Kipling introduz o poder de Mowgli sobre a selva, redesenhando a hierarquia tradicional entre o homem e o animal. Esse poder, identificado por críticos com o próprio poder imperial, cristaliza-se na conversão de Mowgli em guarda-florestal.

A desenvoltura e o ritmo com que Kipling conduz a narrativa são absolutamente fascinantes e nos colocam com uma naturalidade diabólica no epicentro de uma aventura selvagem que não tem nada de romântico e tampouco se contenta em narrar a coabitação do humano e do animal, mas se empenha em desvelar com minúcia um mundo altamente codificado.

LEIS DA SELVA

A história de Mowgli é também a do aprendizado das leis da selva, dos rituais de julgamento que regem a relação entre as espécies. Enquanto o "filhote de homem" aprende com o urso Baloo as regras de convívio, a selva revela uma estrutura jurídica e policiada.

Os Livros Da Selva
Rudyard Kipling
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Kipling projeta uma linguagem implantada nos movimentos que descreve, a ponto de produzir em nós a sensação de estarmos sendo carregados nos braços dos macacos que avançam loucamente pulando entre as árvores. Quando descreve o pelo nanquim da pantera-negra Bagheera, é como se fosse possível sentir sua textura.

Com uma precisão descritiva perfeitamente entremeada na cadência narrativa, trazendo até nós o cheiro e a textura da selva no som das palavras, Kipling produz uma das experiências mais vigorosas de fabulação literária.

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OS LIVROS DA SELVA
AUTOR Rudyard Kipling
TRADUÇÃO Alexandre Barbosa de Souza
EDITORA Zahar
QUANTO: R$ 64,90 (400 págs.)


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