Folha de S. Paulo


Em SP, escritor Ian McEwan diz que vence bloqueio criativo lavando louça

Adriano Vizoni/Folhapress
O escritor britânico Ian McEwan em palestra do Fronteiras do Pensamento, nesta quarta (26)
O escritor britânico Ian McEwan em palestra do Fronteiras do Pensamento, nesta quarta (26)

O escritor britânico Ian McEwan gaba-se por ter "a lava-louça mais vazia do mundo". Ele se dedica a lavar pratos, copos e talheres sempre que encara um bloqueio criativo —termo que ele não gosta de usar; prefere chamar de hesitação, "o que é saudável" para quem se dedica ao ofício da escrita.

De tão comezinha, a cena de um homem lavando a louça pode não constar nas obras do autor: o realismo na literatura exige uma espécie de névoa. "Não quero ser prosaico, [escrever que] o personagem entra no carro, dirige, desce do carro, entra no prédio...", afirma McEwan durante sua apresentação no ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, na noite de quarta (26), em São Paulo —cidade que ele considera "colossal e culturalmente vibrante".

Para a mediadora Fernanda Mena, repórter especial da Folha, o autor de "Reparação" e "Amsterdã", romance que lhe rendeu o Booker Prize em 1998, disse que a dificuldade em apresentar o mundo real na ficção está na visão. "Nós somos criaturas visuais, e a chave para uma cena real, impactante, é conseguir os detalhes visuais certos."

Detalhes que requerem pesquisa, diz. Para escrever "Sábado", romance de 2005 no qual o principal personagem é um neurocirurgião, McEwan passou dois anos acompanhando Neil Kitchen, médico neurologista do National Hospital for Neurology and Neurosurgery, em Londres.

Depois de um tempo e alguns procedimentos cirúrgicos, "as alunas de medicina me chamavam de doutor". Certa vez, "me pediram para ver a cirurgia". McEwan pôs-se a detalhar o tratamento de aneurisma.

"Eu pensava: 'se não consigo fazer isso [explicar o procedimento], não tenho direito de escrever sobre este assunto'", afirma.

Adriano Vizoni/Folhapress
McEwan fala sobre o realismo de suas obras palestra do Fronteiras do Pensamento
McEwan fala sobre o realismo de suas obras palestra do Fronteiras do Pensamento

Apesar de todo o trabalho, "Sábado" não passou incólume a erros. Em certo trecho, lembra McEwan, ele descreve um procedimento feito com o uso de um pincel. Um médico lhe escreveu uma carta, dizendo que aquele procedimento só poderia ser realizado com esponja, e não um pincel.

"Correções são muito bem-vindas", diz. Afinal, "o realismo é a tentativa de religar aquilo que os outros reconhecem". Mais que isso: "O realismo tem uma dívida com a verdade".

O britânico se diverte ao questionar o fato de "ninguém escrever a Franz Kafka dizendo que pessoas não se tornam besouros". E ao citar Gregor Samsa de "A Metamorfose", lembra que o inseto em que o caixeiro-viajante se transforma sempre foi tópico para discussões árduas.

Vladimir Nabokov, em palestras nos anos 1950, "falava por horas sobre qual seria o inseto de Kafka", diz. Além da quantidade de patas que o bicho teria —número desconhecido e de extrema importância para tal mistério da literatura—, outro ponto crucial é: no começo da obra, o homem metamorfoseado em inseto acorda e se levanta, "e insetos deitados de costas não conseguem se levantar".

Citar uma obra em que um homem acorda como um inseto invade o terreno de fantasia –o mesmo que permite a um feto narrar uma história de dentro do ventre da mãe. "Enclausurado", o mais recente romance de McEwan, nasceu da convivência do escritor com sua nora grávida de oito meses.

Enclausurado
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O escritor diz que eles falavam sobre maternidade quando pensou: "Existe um bebê ali dentro que pode estar ouvindo esta conversa". A semente do livro estava semeada. Tempos depois, durante uma reunião tediosa, veio à mente a frase que abriria o romance: "Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher".

"Enclausurado" abre uma concessão ao realismo tão característico de McEwan. "Se você não pode aceitar que um feto fale, você não vai além da primeira página", diz o autor, que acredita haver "muitas verdades, e o realismo é apenas uma".


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