Folha de S. Paulo


Semana na TV traz filmes de Michael Mann, Agnès Varda e Jean-Luc Godard

Kino Lorber Inc./Associated Press
This photo provided by Kino Lorber Inc. shows two children in a scene from the 3D film,
Duas crianças em cena de "Adeus à Linguagem", de Godard

Segunda (17)

Cada vez que vejo "Festa" (1989, 14 anos, Canal Brasil, 13h30) parece uma festa. Estávamos em 1989, a crise ia a toda no cinema brasileiro e as ideias pareciam ter sumido do mapa.

De repente, Ugo Giorgetti chega com este filme de produção pequena, que se passa todo ou quase numa sala de subsolo, onde três artistas (Abujamra, Adriano Stuart e Jorge Mautner) esperam para ser chamados e se exibir aos convidados de uma festa chique.

O tempo passa e nada acontece. Mas não é tanto de tempo que se trata, é mais de humilhação: esses caras contratados por suas habilidades serão chamados de fato? Ou, contratados, nem poderão ao menos trabalhar?

Os três se entendem. Esse entendimento que vem do fato de se desconhecerem até ali, mas de terem alguma afinidade, seja pela profissão, seja pelo sentimento de não pertencer àquele mundo de festa que o contratou.

Seria possível pensar num filme amargo. Nem de longe.

Terça (18)

Uma coisa para deixar qualquer um curioso: por que filmes não norte-americanos só passam, salvo enormes exceções, sempre no canal Cult do Telecine?

Nada contra o canal, mas ele tem um número limitado de assinantes, bem menor do que o canal de lançamentos do Telecine, o Premium.

Isso é conversa para muito mais do que essa coluneta. Ela me ocorre porque "Sabor da Vida" (2015, 10 anos, TC Cult, 22h) passa hoje. Pode não ser a melhor opção do mundo, mas é melhor do que rever, pela milésima vez, "Laranja Mecânica" (1971, 16 anos, TCM, 0h35).

Supõe-se que a TV paga deveria ser um lugar de descoberta ou redescoberta de filmes. Só um caso: "Showgirls", de Paul Verhoeven, foi relançado em DVD no exterior e enfim começa a ser reconhecido. Não podia passar na nossa TV paga?

Em vez disso, cada vez mais recebe-se, quase sempre, um cardápio de mediocridades. Uma hora dessas o povo pode se dar conta. Ou não?

Quarta (19)

Bastou falar (ontem) do cardápio mínimo dos canais de TV paga e os assinantes da HBO, ao menos os do canal Max, têm acesso hoje a nada menos que um Godard: "Adeus à Linguagem" (2014, 16 anos, Max, 0h).

Não precisava tanto. Por que não se pode ter, na íntegra, um filme afinal popular, acessível a qualquer um, como "O Casamento de Maria Braun", de Fassbinder, assunto de hoje do "Filmes que Marcaram Época" (10 anos, Curta, 21h).

Não vamos esquecer de Godard, em todo caso. Na TV não teremos o 3D irônico do filme. Godard o questiona, mas não só. Há ali um homem, uma mulher, um cachorro. O que se passa entre eles: perder-se, vagar.

Em essência, o filme parece nos conduzir a outro ponto: o que se perde no mundo do 3D? É talvez a própria linguagem, com sua ambiguidade fundamental, de que Godard se serve com imagens, palavras e sons. A capacidade de tudo questionar é que está em questão.

Quinta (20)

Outra dessas dúvidas que me ocorrem de tempos em tempos: por que os norte-americanos apreciam tanto os ratos? Já existia o Mickey, o Super Mouse, liderando uma legião de roedores simpáticos, que, no entanto, convivem com um cuidado por vezes obsessivo com a higiene.

"Ratatouille" (2007, livre, TBS, 20h33) retoma esse viés. Esse ratinho francês é dotado de um talento culinário incomum. Não importa onde cultivou esse dom: ele o possui, eis o fato. Mas como pode um rato frequentar uma cozinha?

Divulgação
ORG XMIT: 382601_1.tif Cinema: Cena da animação da Disney/Pixar
Cena da animação "Ratatouille", do diretor Brad Bird

Não pode. Mas ele sente-se como que forçado a lutar contra o mau gosto, que recebe quase como uma ofensa pessoal.

Daí extraiu-se uma animação mais alegórica do que outra coisa: o rato representa o outro, o diferente, o imigrante. Todas essas categorias estigmatizadas não se sabe muito bem por que razão encontram-se de certa forma representadas neste filme afinal bem simpático.

Sexta (21)

Existe nas narrativas de Michael Mann, não raro, um personagem que preserva seus segredos até o fim. Em "Colateral" (2004, 14 anos, FX, 19h), por exemplo, sabemos que Tom Cruise é um assassino profissional.

Mas nunca saberemos quem é ele ou porque é um matador. É uma espécie de "profissional em si". Bem contemporâneo: desconhece outra moral senão a obrigação de cumprir o seu contrato.

Em sua ação ele envolve o taxista Jamie Foxx, sobre o qual sabemos quase tudo, sobretudo que é um sonhador e que aspira a possuir uma frota de limusines. A rigor, os dois não sabem quem são.

O motorista sabe que sonha porque é preciso sonhar, nada mais. O matador não sonha: é um executivo, um homem de ação, quase se pode dizer um empreendedorista.

Algo mudará essa equação ao longo do filme. Mas essa premissa já o torna fascinante, nos convida a vê-lo e revê-lo.

Sábado (22)

Certos assuntos são perseguidos muito mais agudamente quando de forma indireta. É o que faz Pablo Trapero em "O Clã" (2015, 16 anos, TC Cult, 22h), mais um desses filmes que, não vindo de Hollywood, vão parar direto no canal Cult do Telecine.

Estamos nos anos 1980. A ditadura militar acabou. Não os seus efeitos. Entre eles está a família Puccio, cujo patriarca, Arquimedes, pode ser visto como bom homem, bom vizinho, bom tudo.

Na falta de uma ditadura, Arquimedes coloca seu "savoir faire" a serviço do gangsterismo, com a família trabalhando no ramo dos sequestros.

Nada de muito especial, como argumento. O essencial vem da relação entre a câmera e o ator, Guillermo Francella, o Arquimedes: seu olhar metálico, vazio, nada diz sobre ele e suas atividades. É sobre esse não dito que se funda o filme (que, a bem da verdade, termina meio espetaculoso, hiperdramatizado).

Domingo (23)

Um célebre quadro de Millet, do século 19, nos mostra um grupo de apanhadoras de colheita em plena atividade.

É a partir dele que a inquieta Agnès Varda concebeu "Os Catadores e Eu" (2002, livre, Curta!, 20h). Imagem pictórica, primeiro, depois do cinema mudo. Imagem, por fim, atual: o que resta dessa prática, hoje superada pelas máquinas?

Esta é uma das questões propostas. Outra, metafórica, diz respeito ao que sucede com as sobras deste mundo. Do mundo europeu rico, diga-se. Mas desse mundo em que a falência do Estado leva os pobres a viver daquilo que catam.

Varda não se contenta com isso: mais do que o pintor que vai ao campo buscar as catadoras, ela vê sua atividade como um correlato dessas mulheres. Ela também cata, ou capta o mundo para trazê-lo a nós.

Opção bem divertida, porém batida: "Quanto Mais Quente Melhor" (1959, 12 anos, Futura, 22h).


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