Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Instantâneos de poeta não poupam ninguém em 'Treme Ainda'

Uma mulher "tira o penhoar e vem arrastar/ os pés fora do quarto". Ela vai para a rua, onde "o céu é sujo nas poças". Passeia de andador junto com a amiga e, "com bico de papagaio/ só sabe do céu/ por caridade das poças".

No instantâneo de uma imagem sórdida e ao mesmo tempo compassiva, o leitor depara com essa velha e pensa que é como se a conhecesse.

É isso a poesia: condensações tão potentes que chegam a conter e até a ultrapassar o real. Ainda que incapaz de ver o céu no alto, a velha sai e consegue enxergar o pouco que as poças sujas lhe oferecem. Fica-se entre o horror, o desconsolo e certa comoção.

São assim os muitos retratos que compõem "Treme Ainda", livro mais recente de Fábio Weintraub. Olhando para o mundo fora de si, feito de zeladores, mendigos, prostitutas, carroceiros, transeuntes quaisquer, amantes e cabeleireiros, a poesia de Weintraub não poupa nada: nem aos retratados e nem ao leitor que, sob a lâmina fina dos acontecimentos, pede um alento que não vem.

O mundo lá fora é kitsch, cruel e ridículo e "a única vaidade" de uma outra mulher mais velha "é pintar de ruivo o triângulo/ pequeno luxo a que me atrevo/ enquanto as fraldas não vêm". O olhar do poeta presta atenção –enquanto quase todos pensam no pão com manteiga na chapa para forrarem o estômago e irem trabalhar– na mulher que frita sonhos na padaria.

É um olhar que para e não descarta os momentos que aos outros passam despercebidos. Ele vê: "sobre o fogão, vertigem:/ o tacho virou de borco/ o óleo esfriou no corpo". Acidente de trabalho, tragédia, quem se responsabiliza? Ninguém, pois "ninguém tem culpa/ o patrão é bom/ e os irmãos por ela oram".

Ao mesmo tempo que se conhece essa mulher, perfaz-se, concentrado, o próprio país, traduzido numa imagem. O patrão não assume a culpa, a família aceita e a igreja se compactua e justifica.

Treme Ainda
Fabio Weintraub
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Está tudo lá, afinal, no poema "Manual de Instruções", que nem chega a ser irônico, de tão colado ao real: "a rua é pública e um país se faz/com homens e tiros".

De Monteiro Lobato, o dos "homens e livros", para 2016, não sabemos se a realidade se tornou mais irônica ou se é a poesia que se permite olhá-la mais de frente. O fato é que Fabio Weintraub, com "Treme Ainda" não deixa muita pedra sobre pedra, numa exatidão poética que mais lembra o corte de uma faca ou a lente de um microscópio. Seu livro "sem remissão nem prêmio/ sabe que o céu terminou:/ no osso, um caroço/ e a colheita é só isso".

NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Írisz - As Orquídeas" (Companhia das Letras)

Treme Ainda
Autor: Fabio Weintraub
Editora: 34
Quanto: R$ 34,00 (96 págs.)


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