Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Letras mostram profundas lutas da consciência de Dylan

A imagem de Bob Dylan está inevitavelmente ligada à onda que revolucionou os EUA e grande parte do mundo ocidental nos anos 1960: o movimento por direitos civis, liberdades individuais, paz, amor livre, feminismo.

Apesar de ele ter logo tentado distanciar sua trajetória dessa marca, ainda assim a conexão imediata que se faz com seu nome remete àquele período e àquelas ideias.

Não é à toa que "Blowin' in the Wind" continue sendo cantada por pessoas ligadas à esquerda, inclusive no Brasil, como emblema de rebeldia contra o establishment.

O momento mais simbólico de seu esforço para romper com os clichês que lhe foram então estampados ocorreu ainda em 1965, quando tocou no festival de música folk de Newport com uma banda que usava guitarras elétricas.

Muitos fãs que o idolatravam como legítimo sucessor de Woody Guthrie e Peter Seeger o consideraram um traidor da causa, e sua performance gerou controvérsia que, em alguns aspectos, se assemelhou ao que ocorreu no Brasil na mesma época, quanto ao uso de equipamentos eletrônicos na MPB.

Nos anos seguintes, Dylan afastou seu trabalho da política e o aproximou da filosofia e da religião. O álbum "Slow Train Coming" marca a sua conversão ao cristianismo, do qual também se distanciaria após algum tempo.

As profundas lutas de sua consciência chegaram ao público na forma de letras de canções, que foram muito além do embate político dos tempos em que ele surgiu.

Grande parte da sua melhor poesia foi composta depois disso. Muito dela está no álbum "Oh Mercy", de 1989. Como estes versos da canção "The Man In The Long Black Coat" : "Every man's conscience is vile and depraved/You cannot depend on it to be your guide when it's you who must keep it satisfied" (A consciência de cada homem é vil e depravada/Você não pode se guiar por ela quando é você que a tem de satisfazer").

No entanto é bastante provável que a decisão de dar-lhe o Nobel se deva principalmente às posições políticas simbolizadas pelo que ele produziu 50 anos atrás, neste momento em que a ascensão do populismo de extrema direita em diversos países constitui ameaça a muito do que foi conquistado pela humanidade neste meio século, inclusive graças à poesia de Dylan.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, livre-docente em comunicação pela USP, é editor da revista "Política Externa"


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