Folha de S. Paulo


depoimento

Que o humor de Dario Fo mostre responsabilidade de comediante

No mundo que retrocede, onde a estupidez conversadora à direita chega a ser considerada produção de pensamento, a perda de Dario Fo é ainda mais dura.

Mas como ele, não cederemos. Não ficaremos sem sua obra dramatúrgica nem sem suas importantes reflexões sobre o ator cômico e, principalmente, não ficaremos sem seus ensinamentos de como enfrentar, com humor, esse fascismo cotidiano que anda tão cheio de si.

Sua influência pelo teatro que optei foi imensa. Toda uma geração foi impactada, em plena abertura democrática, pela montagem de Antônio Abujamra de "A Morte Acidental de Um Anarquista".

No TBC, vi como fã –umas dez vezes– que aquele lugar de festa trazia mais que um discurso. Ali descobri que a capacidade transformadora do teatro não é mero aforismo.

Assisti a "Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico", com Denise Stoklos. A peça de Franca Rame, parceira de vida e obra de Fo, transborda uma visão feminina que faz orgulhar a todos que somos contra a imbecilidade do machismo.

Ao assistir a Fo em São Paulo no extinto Teatro Mars, pude presenciar algo novo, a maneira despojada como um grande artista poderia tratar o público. Recepcionando a todos antes da sessão, tinha tranquilidade de observar tudo e depois aproveitar cada detalhe na cena.

Fo não subia ao palco para se exibir, mas para dividir sua visão de mundo e assim ríamos de nossas misérias.

Minha memória guarda "A Tigresa", com Maurice Vaneau; Osmar Padro se fazendo em mil em "O Fabuloso Obsceno" e meus amigos Fernando Sampaio e Domingos Montagner me fazendo gargalhar em "Mistero Buffo".

São peças que reforçaram a potência do humor ao interferir no pensamento de uma sociedade retrógrada. Além da memória, temos o presente que é Dan Stulbach, junto ao sempre "parlapatônico" Henrique Stroeter, seguirem em sua vibrante "A Morte Acidental De Um Anarquista".

PIADA NÃO É SÓ PIADA

Seus textos alimentaram importantes grupos brasileiros, como Cia. Stravaganza, Fora do Sério e Commune, e me orgulho que os Parlapatões tenham encenado Fo.

Quando encenei "O Papa e Bruxa", considerada "blasfema" pela Igreja Católica, percebi a capacidade de Fo em lidar com sua imagem pública para enfrentar temas que são manipulados pelo poder instituído.

A peça tratava do poder da Igreja Católica, mas falava de algo mais difícil, a liberalização das drogas, trazendo humanismo ao tema, esvaziado de qualquer paixão religiosa.

Espero que tenhamos a mesma sabedoria para enfrentar a república evangélica do Brasil que se anuncia.

Que os humoristas mais novos, com seus stand ups e talk shows, tão tolos em sua sede de fama e dinheiro, olhem para Fo para aprenderem que uma piada não é somente uma piada.

Que saibam que comediante tem um ponto de vista, que tem responsabilidade sobre o que expressa e que deve saber para onde atira para não errar o alvo. E ainda bem que Fo sempre acertou.

HUGO POSSOLO, 54, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo Parlapatões


Endereço da página:

Links no texto: