Folha de S. Paulo


Bienal de cinema traz índios na frente e atrás da câmera

"Vamos todos nós, índios, festejar. Vamos mostrar para os brancos que não há diferenças e que podemos ser iguais", entoam em guarani os integrantes do grupo de rap Brô MC's. O clipe da música "Eju Orendive" (venha conosco, em tradução livre) é uma das 53 produções exibidas na segunda edição da Aldeia SP - Bienal de Cinema Indígena, que segue até quarta (12), no Centro Cultural São Paulo e em salas do Circuito Spcine.

Mais do que um apanhado de filmes e vídeos sobre índios, o evento revela uma transição no registro audiovisual da vida indígena: sai o olhar etnográfico, a narrativa ditada pelo antropólogo, e entra a visão indigenista, em que eles próprios retratam suas histórias –e também suas lutas: são recorrentes temáticas como a figura da mulher na aldeia e a usurpação de território pelos brancos.

Divulgação
Nilson Tuwe Huni Kuin, diretor do filme
Nilson Tuwe Huni Kuin, diretor do filme 'Nós e os Brabos'

"Quando os indígenas deixam de ser objetos para se tornarem sujeitos do olhar cinematográfico, eles trazem consigo um olhar interior", afirma Pedro Portella, um dos curadores da bienal. Assim eles "garantem sua autoexpressão e, principalmente, rompem com a abordagem classificatória pejorativa que tanto os prejudicou".

Um dos pioneiros nessa transição foi o cineasta radicado em Pernambuco Vincent Carelli, que há 30 anos iniciou o projeto Vídeo nas Aldeias, que cede equipamentos audiovisuais a índios.

No último Festival de Brasília, em setembro, foi ovacionado com o documentário "Martírio", que é uma síntese de todo esse trabalho.

O filme que abriu a bienal na sexta (7) mostra com contundência o massacre aos índios Guarani Kaiowá na região de Dourados (MS). Carelli expõe imagens gravadas por quatro décadas que revelam as entranhas da bancada ruralista –num dos momentos exibe um discurso inflamado da senadora Kátia Abreu, defendendo "derrotar" o Movimento dos Sem-Terra, o Código Florestal e os índios– e cede a câmera para que os próprios indígenas registrem a ação de pistoleiros.

"São reflexões, mais do que denúncias", diz o cineasta sobre "Martírio". "Mais do que uma etnografia, eu quis fazer um filme que não tivesse preocupação em explicar ou se relacionar com a antropologia, mas algo direto, sobre a infinidade da vida na aldeia."

Para Portella, o longa de Carelli "é uma peça que faltava no quebra-cabeça da cinematografia brasileira", pois "uma coisa é mudar o nome para Guarani Kaiowá em uma rede social; outra é batalhar para desmascarar um massacre patrocinado por criminosos assassinos, que se escondem nas fazendas e no Congresso, como Vincent fez".

Dar voz ao índio, segundo o curador, é "um ato político" contra o estereótipo de "indígenas como seres paupérrimos, estagnados no tempo de seus antepassados". "[O líder indígena] Davi Kopenawa, em uma noite quente de Roraima, disse que 'essa máquina –a câmera– não caiu do céu: ela foi tirada da terra'. O homem branco a transformou em máquina para gravar a voz dos indígenas. Agora os indígenas tomaram a máquina e sua voz de volta."

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ALDEIA SP
QUANDO Até quarta (12)
ONDE Centro Cultural São Paulo (r. Rua Vergueiro, 1.000; tel 11-3397-4002) e diversas salas do Circuito Spcine; programação em facebook.com/aldeiasp
QUANTO Grátis


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