Folha de S. Paulo


Presidente da Netflix lembra tropeços e comenta concorrência com canais

Cinco anos atrás, o Brasil se tornou o campo de testes para a expansão mundial da Netflix, serviço de vídeos por demanda, via internet, que funcionava desde 2007 nos EUA. Foi seu primeiro "mercado internacional". As lições que tirou, a começar da persistência, foram usadas para atingir quase 200 países.

Reed Hastings, presidente da Netflix, conta como foram aqueles primeiros tempos, com baixa qualidade do catálogo e dificuldade para receber os pagamentos, e o que enfrenta hoje, no Brasil em crise. "Quando a economia se torna desafiadora, as pessoas podem sair menos, mas nós somos muito baratos", diz. A empresa não divulga o número de assinantes no Brasil. No mundo, são 83 milhões (veja abaixo).

O que tem crescido, até no Brasil, é a concorrência. A Globo estreou seu serviço no final de 2015 e a HBO promete o seu para o final de 2016. Como a Netflix, é vídeo por demanda, via internet, com assinatura barata.

Hastings não esconde diferenças ao falar da Globo: "Eles nos veem como concorrência, então não licenciam conteúdo para nós. A Globo vai produzir para a sua rede e nós vamos produzir para a nossa. Como dois times competindo". A seguir, trechos da entrevista, feita por telefone.

Robin Utrecht/Netflix
AMSTERDAM - Portret van directeur Netflix. Reed Hastings COPYRIGHT ROBIN UTRECHT ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Reed Hastings, presidente e fundador da Netflix, em Amsterdã

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Folha - Quais foram os desafios naquele primeiro ano?
Reed Hastings - Foi nosso primeiro mercado internacional. Houve muito que não fizemos direito, em termos do pagamento, de não termos os dados. As legendas eram boas, mas não o necessário. Não perdemos a confiança, continuamos a melhorar.

No ano seguinte e no posterior, o número de visualizações aumentou, conforme as pessoas recebiam finalmente conteúdo mais relevante e atraente. Lentamente, o ritmo cresceu. Investimos na equipe em São Paulo e esperamos que todos da Netflix entendessem melhor o país.

A experiência foi útil para a estratégia posterior, no mundo? Quais foram as lições?
A grande lição foi simplesmente sermos pacientes. Aprendemos basicamente que as pessoas gostam da TV pela internet, que é por demanda, você pode assistir quando quiser, em qualquer tela. E que isso é verdade ao redor do mundo.

O nosso trabalho, cinco anos atrás, foi sermos apenas bons ouvintes, sobre o que precisávamos melhorar. A infraestrutura de pagamento, o suporte ao cliente, o conteúdo, todas essas coisas que aprendemos.

"Narcos" se tornou marco para uma série mundial de sucesso. É seu modelo para a programação global?
Estamos tão animados com "Narcos". Quando você olha para Wagner [Moura], como [Capitão] Nascimento em "Tropa de Elite", pode vislumbrar o início do que acontece em "Narcos". Estamos vibrando por dar a Wagner uma plataforma global e que esteja agora em toda parte.

Quanto do êxito de "Narcos" pode ser creditado a ele?
Sempre que você tem um sucesso, há muitas coisas que foram feitas direito. O que [o diretor] José Padilha fez com a história, a forma como ela foi contada, o refinamento de estilo que estava em "Tropa de Elite" foi muito forte.

Vocês têm uma meta de 50% de programação original?
Bem, estamos trabalhando com uma meta de satisfação extraordinária do cliente. Se isso vier com os nossos próprios títulos, ótimo. Se vier com títulos licenciados, é bom também.

"Os clientes estão satisfeitos com a Netflix?", é assim que vemos aqui. Nós temos uma primeira série original brasileira, "3%", estreando no final deste ano. Estamos animados com esta e vamos continuar produzindo mais em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Em 2011, o país passava por um boom. É muito diferente agora. Quais são os desafios?
Felizmente para a Netflix, nós somos muito baratos. Assim, quando a economia, em qualquer parte do mundo, se torna muito desafiadora, como infelizmente tem sido no Brasil, as pessoas tendem a ir para soluções de alto valor.

Elas podem sair um pouco menos [de casa], mas nós somos um bem muito básico. Apesar da frustração e do sofrimento no Brasil, não caíram os números da Netflix, em parte porque é barata.

No segundo trimestre, a Netflix ganhou menos assinantes do que esperava nos EUA e internacionalmente. Por quê?
Se olharmos ao longo de cinco anos, vamos ver que crescemos a cada trimestre. Mas às vezes é difícil prever. O primeiro trimestre foi significativamente acima das nossas expectativas. O segundo foi um pouco abaixo. Mas o crescimento subjacente tem sido muito forte, ao redor do mundo, incluindo o Brasil.

Nos EUA, os resultados têm a ver com a crescente concorrência, do conteúdo original no Hulu a redes como a CBS? E você espera que essa concorrência cresça no Brasil?
Bem, existe tanta concorrência. Se for pensar, numa noite em que você ou uma outra pessoa não assista à Netflix, o que faria? Poderia estar na televisão, poderia ser um programa da Globo, poderia ser um jogo de futebol. Poderia também estar jogando cartas, poderia ser o YouTube, o Facebook, poderia ser uma centena de coisas.

Mas nunca percebemos uma grande mudança, material, em torno de um serviço tipo Hulu. É bom que existam muitos deles, ao redor do mundo, mas nós competimos amplamente pelo tempo dedicado ao entretenimento.

A HBO reafirmou o lançamento [de seu serviço via internet no Brasil] para este ano. Mesmo com a crise econômica, há espaço para outros atores?
Sim, com certeza. Se a HBO tiver um grande conteúdo no Brasil, tenho certeza que os brasileiros estarão interessados em assiná-la também.

Eles assinam a Netflix se gostam do nosso conteúdo. A questão é realmente se você tem para oferecer o que as pessoas querem.

A Globo também começou a acelerar em TV pela internet. Como você vê a Globo Play? Vocês podem virar parceiros?
Eu acho que a Globo Play é um grande passo adiante para a Globo. As redes americanas de televisão têm feito coisa semelhante com, por exemplo, o Watch ABC. O que eles querem é se adaptar, porque a Globo produz um grande conteúdo e agora quer tornar esse conteúdo disponível na internet.

Isso significa concorrência para nós, mas também melhores serviços para o consumidor brasileiro. A internet está mudando muita coisa, e empresas como Globo ou HBO que se adaptam à internet estão sendo espertas. Nós tivemos a sorte de começar na internet. Eles não fazem muitas parcerias conosco. Eles nos veem como concorrência, o que é justo, então eles não licenciam conteúdo para nós.

Mas você acha que isso pode mudar? Vai negociar?
Nós levamos algum conteúdo da Globo fora do Brasil, portanto, existem algumas pequenas coisas para fazer, sobre isso.

Mas eu acho que, na maioria das vezes, a Globo vai produzir para a sua rede e nós vamos produzir para a nossa rede. Como dois times esportivos competindo.

A Netflix responde por um terço do tráfego da internet nos EUA. É assim também no Brasil? Você teme ameaças à neutralidade da rede por isso?
A neutralidade da rede [princípio pelo qual todos os dados devem ter tratamento isonômico na internet] tem sido muito forte em toda a América Latina, assim como nos EUA. E os números [de tráfego da Netflix no Brasil] estão crescendo, mas eles não estão em um terço.

Vocês têm um último grande emergente para entrar, a China. Por que está demorando?
A China é singular, porque lá você precisa de uma licença do governo para começar. Você não pode simplesmente começar, como em qualquer outro país. E não temos sido capazes de obter essa licença.

Uma pergunta que um dos meus filhos sugeriu: Por que vocês não têm "Os Simpsons" no catálogo brasileiro?
"Os Simpsons"? Alguém nos superou, na disputa de lances pelo conteúdo. Será que os seus filhos experimentaram "Fearless"? É sobre vaqueiros brasileiros no Brasil e nos EUA, em competições. É uma série de documentários incrível. Acabou de sair.

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NETFLIX EM NÚMEROS

83 milhões de assinantes, em mais de 190 países, acessam mais de 125 milhões de horas de programas e filmes por dia

35,2% é a fatia da empresa no tráfego de internet nos EUA e Canadá, seguida por YouTube (18%) e Amazon Video (4%)

8,3% é o percentual da Netflix no tráfego de internet da América Latina

20 idiomas estão disponíveis atualmente; em 2011, quando estreou no Brasil, havia apenas inglês, espanhol e português

Mais de 45% dos membros de fora da América Latina consumiram conteúdo produzido na região

Dobrou o catálogo de conteúdo nacional no Brasil de 2013 para 2016

Fontes: Netflix/julho de 2016, Sandvine/junho de 2016


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