Folha de S. Paulo


Ficção expõe índio deslocado do mundo dos brancos e da tribo

Yure Cesar/ Divulgação
Anderson Tikuna protagoniza o longa dirigido pela dupla Sérgio Andrade e Fábio Baldo
Anderson Tikuna protagoniza o longa dirigido pela dupla Sérgio Andrade e Fábio Baldo

Na cena que abre "Antes o Tempo Não Acabava", em competição no Festival de Brasília, um jovem indígena passa pelo ritual de vestir uma luva infestada de formigas.

Em seguida, como irá mostrar o longa de ficção de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, o protagonista irá se debater contra o duplo significado daquele rito de passagem —a tradição de sua aldeia e o fardo da masculinidade.

Anderson (Anderson Tikuna) larga sua tribo para viver na periferia de Manaus, trabalhando como cabeleireiro. Caminha pelo limiar, deslocado tanto do mundo dos brancos como do mundo dos índios. "Antes o Tempo Não Acabava" foi um dos três títulos brasileiros exibidos no último Festival de Berlim, em fevereiro.

"Me intriga o indígena que vive na cidade", diz o manauense Andrade. "Ele vive também as angústias de quem vive nas cidades." Na noite de sábado (24), ao apresentarem o filme, os diretores ecoaram os protestos anti-impeachment que têm ocorrido na maior parte das sessões da mostra.

Com uma camiseta em que se lia "cinema contra o golpe", igual à vestida por cineastas de vários dos filmes exibidos, o paulista Baldo leu um texto: "Esse golpe é um ataque devastador não apenas à nossa democracia, mas a todas as conquistas sociais". E agradeceu ao ator principal, "por confiar em dois brancos".

No debate do filme, uma antropóloga contestou o retrato feito dos indígenas, especialmente a menção a práticas como o infanticídio e a condenação à homossexualidade nas tribos. Andrade se defendeu: "Quisemos retratar o personagem como mentalidade humana, e não como refém de uma cultura".

Também compete pelo troféu Candango, que será anunciado na terça (27), o cearense "O Último Trago", do trio Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti —integrantes do coletivo Alumbramento. O roteiro cheio de simbolismos serve de estofo à plasticidade das imagens, captadas em fotografia grandiosa.

Já "A Cidade em que Envelheço", de Marília Rocha, é uma trama sobre os silêncios e os desconfortos que o tempo traz: duas jovens amigas portuguesas se reencontram anos depois de terem perdido o contato quando uma delas resolve visitar a outra.

Em Brasília, o filme adquiriu inevitável comicidade nas cenas em que uma das personagens lusitanas faz troça das peculiaridades brasileiras: do hábito de pedir cigarro a desconhecidos nas ruas ao desleixo com que os azulejos são dispostos nos banheiros.

O jornalista viajou a convite do Festival de Brasília


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