Folha de S. Paulo


Arte do palhaço forjou a formação do ator Domingos Montagner

A formação do ator paulista Domingos Montagner, morto nesta quinta (15), aos 54, passa pelas artes do picadeiro e do palco. No final da década de 1980, cursou interpretação com Myriam Muniz, fez parte do grupo Pia Fraus, experimentou dança com coreógrafos como Ruth Rachou e Denilto Gomes. Mas foi no circo que forjou o talento para a comunicação direta com o público e a intimidade com o risco em técnicas como o trapézio.

Roger Avanzi, o Picolino, está entre os palhaços ou "mestres", como gostava de dizer, com os quais aprendeu o ofício no Circo Escola Picadeiro, em São Paulo, onde ingressou em 1989. No mesmo espaço, três anos depois, conheceu o também ator e palhaço Fernando Sampaio, parceiro com quem fundaria em 1997 o grupo La Mínima.

A primeira obra da dupla, "La Mínima Cia. de Ballet", tornou-se referência da síntese circo-teatro na cena paulista contemporânea: súmula da leveza do palhaço com o rigor físico da acrobacia, ainda que na chave paródica, com particular despojamento nas apresentações ao ar livre.

O Montagner que o Brasil conheceu por meio da teledramaturgia nos últimos oito anos é tributário da pesquisa e do aperfeiçoamento continuado em atuação e dramaturgia física ao lado de Sampaio.

Nesses 19 anos o La Minima celebrou humor e rigor em diálogo com diretores convidados como o italiano Leris Colombaioni, o americano Leo Bassi, o argentino Chacovachi e os brasileiros Fernando Neves e Alvaro Assad. Este encenou e coadaptou "A Noite dos Palhaços Mudos" (2008), a partir da HQ homônima de Larte, espetáculo que proporcionou à dupla, no ano seguinte, dividir o troféu de melhor ator do Prêmio Shell de Teatro em São Paulo.

Outra experiência singular de Montagner e Sampaio foi a criação do coletivo Circo Zanni, em 2003, que consiste em subir a lona em diversas cidades, difundindo o espírito mambembe (e profissional) ao revitalizar a linguagem sob bases tradicionais e mostrar a relevância dos circos de pequeno e médio aonde chegam.

O trabalho mais recente do repertório foi "O Mistério Buffo" (2012), texto do italiano e Nobel da Paz Dario Fo, em que o grupo compartilhou a concepção com a diretora Neyde Veneziano. Nele, os palhaços Montagner, Sampaio e Fernando Paz mergulharam em quadros alusivos a parábolas da Bíblia e do Evangelho quanto às formas do poder e de quem a ele se submete.

Em duas mensagens enviadas ao "Painel do Leitor" deste jornal foi possível vislumbrar a integridade do ator e artista circense Domingos Montagner, já ancorado na visibilidade das novelas, ao posicionar-se publicamente em assuntos relativos ao universo das artes cênicas no país.

Na edição de 24/1/2014, disse: "Numa época em que nós, artistas, e outros profissionais de teatro nos desdobramos para encher plateias, a 'Ilustrada' dedica meia página a discutir se o público deve ou não aplaudir de pé ('Maria vai com as outras', ontem). Não existe teatro sem público e com ele o artista deve se comunicar. Essa é a essência do nosso ofício. Que os diretores se concentrem na direção de seus espetáculos e deixem que o público aplauda de pé, sentado ou mesmo que vaie. Mas que venha".

E na mensagem de 4/1/2016, anotou: "A Folha dedicou a primeira página da 'Ilustrada' do dia 2/1 a um espetáculo 'off Broadway', com uma atriz polonesa, em que o tema é a vida da irmã de Mozart [citação a Sylvia Silo, protagonista da peça 'The Other Mozart', então em cartaz em Nova York). Gostaria de parabenizar o jornal por dar ao teatro tal destaque e também receber o fato com euforia e otimismo, vislumbrando a possibilidade da conquista desse espaço pelos artistas nacionais, que possuem pesquisa sólida de linguagem teatral e que, no entanto, ainda vivem na esperança de constar dos roteiros semanais".

VALMIR SANTOS é editor do site Teatrojornal - Leituras de Cena.


Endereço da página:

Links no texto: