Folha de S. Paulo


Em livro, médica relata experiência pessoal com câncer de mama

Ter câncer não é punição, desleixo com a saúde, nem sinal de incompetência em lidar com emoções. Não é resultado de raiva, ódio ou rancor, como muitos apontam. Tratar da doença não é guerra, e doente não é guerreiro.

É o que afirma Elcylene Leocádio, 60, uma médica que recebeu o diagnóstico de câncer de mama e resolveu refletir a respeito da doença enquanto tratava dela. Escreveu diariamente, por um mês, sobre sua experiência e publicou na internet. Seus textos estão reunidos agora no livro "Outubro Rosa" (Produções do Tempo).

"Divulgar a minha fala foi uma decisão política, feminista. Eu não queria de jeito nenhum passar uma ideia de ter lutado contra a doença, de a ter vencido. Penso na doença como aliada, não como inimiga, intrusa. Por um longo tempo, o câncer e eu éramos a mesma coisa", diz ela em entrevista à Folha.

Desconstruindo paradigmas, Elcy combate a ênfase exagerada na mamografia. "Confiar cegamente nos exames periódicos pode afastar a mulher do autoconhecimento, da escuta de si, aspecto importante para a saúde de modo geral", declara.

Ela conta que nos dez anos anteriores ao diagnóstico fez mamografia e ecografia regularmente. Os exames não detectaram o câncer até que ela mesma percebesse o retraimento do mamilo direito.

"Nesse momento eu já estava com uma área de 9 centímetros comprometida. Tive um tumor que não é de fácil diagnóstico, por simular a glândula mamária, e ter mamas muito densas", diz.

O impacto da doença a transformou. "Eu mudei inteirinha. Mudou meu corpo (engordei dez quilos). Caiu o cabelo e deixei de pintá-lo quando voltou a crescer. Mudou o meu jeito de achar que podia fazer tudo. Passei a pedir mais ajuda. A dizer 'não posso' e assumir isso sem culpa. Passei a declarar com todas as letras o meu amor pelas pessoas que amo. Fiz as pazes com o desejo de atender, de cuidar de gente", afirma.

Pergunto a Elcy sobre Clara, do filme "Aquarius". Com marcas radicais de um tratamento de câncer de mama, a personagem de Sonia Braga enfrenta preconceitos e, ao mesmo tempo, demonstra determinação. Como é isso?

"O preconceito é alimentado pelas crenças que criamos. Desde quando o adoecer era um castigo de Deus, até os dias atuais, quando se diz por aí que o câncer é fruto do ódio que temos no coração", analisa a médica.

Para ela, esse pensamento tem raízes "em nossa cultura, nas relações sociais de gênero, na forma como concebemos a beleza". No caso da mulher, observa, a perda do peito ainda hoje é vista como perda da feminilidade.

"Como se sentir capaz de despertar desejo no seu parceiro ou parceira com tantos estereótipos sobre o sexo e o amor? Ama-se o feio? Deseja-se o imperfeito?", questiona.

Além disso, diz, muitas mulheres enfrentam a cobrança dos que as consideram responsáveis pela doença. "Ah, não fez os exames? Engordou muito? Não faz atividades física? Pode-se fazer tudo isso e mesmo assim adoecer."

Médica militante e feminista, Elcy se diz preocupada com as atuais propostas de mudança na saúde. "Fiz medicina em um período pré-Sistema Único de Saúde. Numa época em que tínhamos legalmente cidadãos e cidadãs de primeira e segunda categoria: os segurados, com carteira assinada, e os indigentes, que recebiam atenção em saúde de qualidade bem inferior, mesmo nos serviços públicos", conta.

Ela lembra que "um hospital chegou ao cúmulo de usar dois carimbos para facilitar a identificação dos pacientes: Suíça e Somália. Espero que a população brasileira tenha discernimento e coragem para impedir que voltemos a essa situação", declara.

Na sua avaliação, "o que pode resultar dessa política de cortes é o agravamento da situação de saúde, o aumento da mortalidade, a precariedade da infraestrutura dos serviços. E, se o corte incidir nos sistemas de informação, o falseamento das estatísticas".

Ela, que não adoecia e nunca havia feito uma cirurgia, foi buscar entender o significado do que lhe acontecia para além dos compêndios de medicina. O resultado está no livro, misto de diário, ensaio e manifesto.

"Cada pessoa vive o que lhe é dado viver. Procuro falar da doença e das metáforas que a rodeiam do modo mais limpo possível. Faço isso seguindo [a crítica de arte] Susan Sontag, para quem tratar a doença sem metáforas é a maneira mais saudável de adoecer", afirma.

OUTUBRO ROSA
AUTOR Elcylene Leocádio
EDITORA Produções do Tempo
QUANTO R$ 50 (68 págs.)


Endereço da página: