Sim, "Aquarius" é um filme de impacto. Não um impacto imediato, mas algo longamente preparado e amadurecido. Algo talvez nem mesmo indispensável ao filme de Kleber Mendonça Filho, mas que está lá.
Vamos ao trailer: ele nos leva a uma senhora, Clara (Sonia Braga) disposta a lutar até o fim contra os incorporadores que pretendem demolir o pequeno prédio onde tem seu apartamento e substituí-lo por um desses arranha-céus que povoam a orla recifense. Um filme, sugere o trailer, contra a especulação imobiliária.
Não é mentira, mas está longe de ser toda a verdade, pois ali tudo se constrói meticulosamente, ao longo de derivas que envolvem, para começar, a família.
Já no início encontramos Clara, jovem, em 1980, um ano depois de superar um câncer, festejando o aniversário de uma tia. Ela tem os cabelos curtos. Nós a reencontramos na atualidade. Tem filhos e netos. Tem, sobretudo, longos cabelos. E a pergunta é quase inevitável: desde quando deixou de cortá-los? Desde o câncer? Ou desde a morte do marido, em 1997?
Pergunta ingênua, mas que envolve motivos ligados à família a que o filme retorna com insistência: morte, continuidade, permanência. A família é um lugar de passagem de gerações, mas de permanência de um espírito.
Abrir um álbum de fotos é abrir-se tanto ao passado como ao futuro. E Clara gosta de abri-los.
Eles representam um, digamos, dever de memória. E, assim como vai ao cemitério depositar flores no túmulo do marido, Clara lutará pela continuidade do lugar onde viveu com o marido, onde criou os filhos. A casa é um lugar de afetos.
A questão do cabelo de Clara não é nada secundária, como vimos. Ela designa o tempo, o câncer, a morte, a memória. E a memória, por sua vez, engendra o dever de resistência (e, portanto, dever de cidadania, essa palavra que já começa a cair de moda).
Ao mesmo tempo, nos remete ao presente: à continuidade, ao prazer da convivência com os amigos, de um baile, da descoberta de alguém, da escuta de um disco, o terror de um pesadelo.
Este é um filme de derivas, de inúmeros motivos que se sucedem em mosaico, como a compor o que se pode entender como o retrato total de sua protagonista.
Existe, claro, um antagonista: a construtora. Ou a especulação imobiliária que representa. Ou o capitalismo selvagem que a especulação representa. Ou poder que a selvageria representa. Poder familiar (outro lado da família: nepotismo etc.). Não um poder econômico, não é esse o ponto do filme, mas um poder físico.
Poder que se manifesta nos danos que pode causar à proprietária de um apartamento, mas, mais do que isso, danos civilizatórios. Danos aos valores da convivência e do caráter, substituídos pelo valor de mercado.
É a isso que Clara se oporá com a coragem do pistoleiro que, num bangue-bangue, enfrenta o bando de poderosos apenas com sua arma. Pois é bem disso que se trata: de um faroeste. Daí seu surpreendente impacto.
(Ah, sim, Sonia Braga está espetacular, num elenco muito bem dirigido).