Folha de S. Paulo


Análise

Michel Butor foi autor realista sem realismo

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E0YM7H Sep. 18, 1970 - Here is a portrait of the French writer Michel Butor that was taken at his property in Nice. Foto:Keystone Pictures USA / Alamy Stock Photo
O escritor francês Michel Butor no escritório de sua residência, em Nice, em 1970

Muito já se falou das inovações estilísticas do francês "A Modificação", narrado na segunda pessoa do plural ("vous"). Mas compreender o legado literário de seu autor, Michel Butor, morto na quarta-feira (24), aos 89 anos, exige um olhar ainda mais retrospectivo, que supera o círculo reunido nas décadas de 1950 e 1960 pela editora Éditions de Minuit –retornemos a Honoré de Balzac, ainda na primeira metade do século 19, e compreenderemos de fato os méritos de "A Modificação".

Germes das principais tendências realistas e naturalistas da literatura francesa, as dezenas de narrativas que compõem "A Comédia Humana" criaram um modelo de romance tão estável quanto difícil de ser superado.

Publicadas originalmente sob a forma de folhetins, suas histórias eram aguardadas pelo restrito público alfabetizado de então, que chegava a se acomodar nas salas de suas casas para ler cada episódio em conjunto, familiarmente.

O segredo, conforme exaustivamente apontado pela crítica francesa, era seu narrador. Entidade onisciente, como um demiurgo sabedor de todos os gestos, os sentimentos e as pretensões dos personagens, revelava-se capaz de criar as expectativas que, mais adiante, viriam a atender, surpreender ou frustrar. Tudo de modo seguro, em linguagem fácil para aqueles que, na época, liam. Ou ainda, em uma analogia, apesar de anacronismos: como uma telenovela dos nossos dias.

Somam-se a isso os personagens balzaquianos, sobre os quais tanto se debruçou o filólogo Erich Auerbach. Desprovidos de profundidade psicológica, não são indivíduos, mas somente metonímias dos grandes tipos sociais que o monarquista Balzac viu se multiplicarem após a Revolução Francesa, no advento da modernidade. O usurário Gobseck, a pensionista Madame Vauquer, o avaro burguês Goriot e assim por diante.

A grande questão que passou a se impor já com a Belle Époque é o quanto de realismo de fato Balzac oferecia. E essa dúvida –o quão real seria o realismo de Balzac e seus herdeiros–, caiu como uma luva nas mãos dos autores do Nouveau Roman.

A realidade humana, especialmente após Proust e a filosofia do tempo psicológico de Bergson, é instável, volúvel, inapreensível. Se o que se busca é o real, então o romance deve ser o mais particular e movediço possível.

Daí a relevância do pronome "vous" (traduzido por Oscar Mendes, em 1958, como "tu") em "A Modificação". Pode-se ler tanto o diálogo interior do protagonista Léon Delmont consigo mesmo ou a máxima incorporação do leitor à obra. E aí o nível de individualidade (ou de realidade) atinge seu ápice. Porque cada leitor é único.

Vide a abertura da obra, quando Delmont, alto executivo da fábrica italiana de máquinas de escrever Scabelli, entra em um trem com destino a Roma para um encontro com a amante Cécile: "Você pisou com o pé esquerdo sobre a canaleta de couro e, com seu ombro direito tentou, em vão, empurrar um pouco mais a porta de correr".

Afinal, é Delmont ou nós, leitores, quem empurra a porta? Essas perguntas são traiçoeiras. Não há respostas excludentes entre si. Personagens e leitores se confundem, como dita a real experiência literária.

Essa era a esperança do crítico Bernard Dort em 1955, quando cunhou o nome "Nouveau Roman". Dizia ele com entusiasmo: "O romance é novamente possível. Um romance sem más intenções, nem usurpação de uma divindade impossível. E é desse romance que, talvez, nascerá a verdade de nossa literatura".

Entenda-se: um romance que, incorporando as inovações literárias da virada do século, pudesse aprofundá-las e afastar-se do modelo narrativo de Balzac. Tentando distanciar-se do realismo, talvez Michel Butor tenha sido um dos mais verdadeiramente realistas escritores franceses.


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