Folha de S. Paulo


Em novo livro, Bernardo Carvalho trata de relação entre amor e violência

Karime Xavier / Folhapress
SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -24 /08/16 - :00h - Retrato do escritor Bernardo Carvalho, que está lançando novo romance. ( Foto: Karime Xavier / Folhapress). ***EXCLUSIVO***ILUSTRADA
O escritor Bernardo Carvalho em sua casa, em São Paulo

No começo, estava uma crise individual –que coincidiu com uma crise mundial. O novo livro de Bernardo Carvalho, "Simpatia pelo Demônio", que chega agora às livrarias, é a expressão do encontro entre a intimidade e a experiência coletiva do homem.

O conflito íntimo do escritor era uma crise de meia-idade aos 50. Carvalho, 55, colunista da Folha, viu-se em "uma nova adolescência", diante da necessidade de se "reinventar".

"O sexo muda, o amor não é mais o mesmo, há uma ideia de proximidade da morte. Me deu um barato estranho. Quanto mais você se agarra à vida, mais desesperado você fica."

À crise pessoal, somou-se uma reflexão sobre a violência no mundo, principalmente o terrorismo. Não à toa, "Simpatia pelo Demônio" começa com uma discussão sobre um dos mais antigos temas da literatura: a guerra.

"A violência pode ser vista pelo lado social, o terrorismo como reação à opressão do Ocidente. Mas no livro também quis olhar o elemento individualizado, a coisa do desejo", diz o autor.

Com esses dois elementos, o novo romance é um pensamento sobre a relação entre amor e violência, nas relações privadas e na geopolítica. Por que os homens lutam?

No centro do enredo está Rato, funcionário de uma agência humanitária, autor de uma tese sobre a violência. Ele é enviado a um país do Oriente Médio para pagar o resgate do refém de um grupo terrorista.

Paralelamente, o livro conta o caso amoroso conturbado que o protagonista tem com um sujeito chamado no livro apenas de Chihuahua.

PERVERSÃO

Manipulador, Chihuahua é usado pelo narrador para fazer uma reflexão sobre a personalidade perversa –e também sobre a natureza do desejo. Rato cai na armadilha do amante como um patinho.

"Essa crise dos 50 me pôs nessa vontade desesperada de renovar a possibilidade do amor. Você vira um velho babão, pode se apaixonar por qualquer pessoa na rua", afirma Carvalho.

"Não sei se você passa a ver as coisas com mais sensibilidade ou se é alucinação, mas você passa a reconhecer isso aí [a personalidade perversa] nas pessoas. Enquanto escrevia, vi gente assim, mas não necessariamente em minhas relações."

Diante de tantos dilemas, "Simpatia pelo Demônio" traz um narrador diferente do realismo tradicional. Bernardo Carvalho apresenta um narrador que cria teses sobre o desejo e a violência.

Nesse ponto fica clara, além do pensamento sobre os personagens, a exploração de linguagem do autor.

"Há uma regra no realismo psicológico contemporâneo que diz que o narrador não emite opiniões. Um bom romance não diz, mostra. Mas comecei a ler Proust, um autor realista de precisão incrível, com um narrador em que juízos de valor são epifanias."

Não é só a linguagem. "Simpatia pelo Demônio" traz um diálogo com as ideias sobre o amor de Proust. "Especialmente 'Sodoma e Gomorra' [quarto volume de 'Em Busca do Tempo Perdido']", diz o escritor.

O romance também mostra um autor com forte consciência da estrutura para contar uma história. O livro é construído com a forma de uma espiral –uma narrativa que avança ao mesmo tempo em que dá voltas sobre si mesma, repete o que contou algumas páginas atrás.

O resultado é um livro que pode até não ser uma obra de alcance massivo, mas também passa longe de ser hermética para o leitor não chegado a nerdices literárias.

É difícil entender que o romance tenha sido escrito pelo mesmo autor que, em julho, na Flip, se envolveu em uma polêmica ao dizer "não me interessa o leitor".

"Perguntaram [na Flip] se eu pensava no leitor enquanto escrevia. Não, não penso. Nem o cara que quer fazer o maior best-seller deve pensar. Escrevo livros que eu gostaria de ler", diz o autor.

"É claro que eu adoraria ser lido por milhões de pessoas, mas acho que não fui talhado para isso. E não dá para fazer uma concessão."

Carvalho critica a relação de "prazer absoluto" com o texto estabelecida pela internet. Para ele, o leitor acaba tratado como cliente –e a literatura deveria ser uma combinação de prazer e esforço.

Simpatia pelo Demônio
Bernardo Carvalho
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Polêmicas de lado, Carvalho tenta mostrar com o novo livro a ambiguidade dos sentimentos humanos. Eis uma imagem de que ele gosta: sem descobrir o fogo, a espécie não teria sobrevivido. Mas queimar combustíveis fósseis é a mesma coisa que pode destruí-la.

"A sobrevivência é ao mesmo tempo suicídio. A morte está embutida na vida. Por mais que você tenha consciência do processo, você não consegue freá-lo, porque ele é vital."

As ambiguidades do romance estão resumidas na capa. Um quadro de Bosch mostra São Cristóvão carregando Cristo nos ombros (pesado por carregar os pecados do mundo, diz a lenda). Ao fundo, um homem enforca um urso.

SIMPATIA PELO DEMÔNIO
AUTOR Bernardo Carvalho
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (240 págs.)


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