Folha de S. Paulo


Otto Maria Carpeaux plagiou Walter Benjamin, defende pesquisador

Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 14-08-1959: O jornalista Otto Maria Carpeaux, autogrofá o livro
O crítico literário Otto Maria Carpeaux, em 1959

É como um cristal que trinca. Otto Maria Carpeaux (1900-1978), austríaco que fez carreira como um dos principais críticos literários do Brasil, copiou um famoso texto filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), de acordo com uma pesquisa sobre a literatura russa que acaba de ser defendida na USP (Universidade de São Paulo).

A descoberta foi feita pelo pesquisador Bruno Gomide, para sua tese de livre-docência sobre a literatura russa no Estado Novo, defendida em junho na universidade.

A informação foi antecipada, no sábado (20), pelo jornal "O Estado de S. Paulo".

O texto em questão é "Rússia Sacra", publicada no "Correio da Manhã", em 1942. Entre citações parecidas, paráfrases e alusões sem citar a fonte, o artigo é mesmo semelhante a "O Narrador", publicado em 1936 na revista "Orient und Okzident" — e hoje um dos textos mais conhecidos do pensador alemão.

Ambos tratam do escritor russo Nikolai Leskóv, que não era muito conhecido no país. O próprio Benjamin, à época da publicação de "Rússia Sacra", também não era um nome badalado como hoje, o que só aconteceu a partir dos anos 1960.

Procurado, o pesquisador não quis comentar o assunto, mas encaminhou à reportagem um artigo em que explica os pontos de sua tese.

Gomide levantou mais de 600 críticas literárias publicadas em jornais na época e, no artigo, afirma que o padrão era dar crédito às fontes. E o próprio Carpeaux fazia isso.

Logo no começo de "Rússia Sacra" já é possível ver uma paráfrase do texto do autor alemão. É quando Carpeaux afirma "romance é livro para ser lido; conto é história para ser narrada". O crítico associa o surgimento do romance à invenção da imprensa, ao passo que o conto estaria filiado à tradição oral.

Em outro trecho, o crítico literário faz citações do poeta francês Paul Valéry muito semelhantes àquelas feitas no texto de Benjamin.

Uma das maiores semelhanças entre os dois escritos é o final dos dois. Onde Benjamin conclui seu texto dizendo que "o narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo", Carpeaux diz: "O contista é a figura em quem o justo se encontra consigo mesmo, para reconhecer o sentido da vida e a consolação da morte."

Em sua pesquisa, Gomide ainda encontrou evidências de outros casos em que o crítico literário austríaco pode ter feito citações sem deixar claras suas fontes. São casos menos gritantes do que em "Rússia Sacra".

Em um artigo sobre o autor russo Gontcharóv, Carpeaux o apelida de "poeta do verão", imagem usada por Renato Poggioli publicado na revista literária "Circoli", em 1937.

Poggioli, nesse contexto, é semelhante a Benjamin: um crítico à época desconhecido, mas que depois consagrou-se como um grande estudiosos da cultura eslava.

Em um ensaio sobre Dostoiévski, Carpeaux ainda chega a citar Thomas Mann, segundo a pesquisa de Gomide —também sem mancionar a fonte.

A Folha selecionou trechos semelhantes nos dois textos:

1.

Otto Maria Carpeaux:
Fala Paul Valéry algures dos processos pacientes da Natureza, produzindo pérolas impecáveis, vinhos maduros, efeitos preciosos duma paciente cadeia de causas semelhantes. Outrora, os homens imitavam esses processos pacientes, produzindo miniaturas, obras de marfim, laca, esmalte; hoje, já não: o homem moderno não faz trabalhos que não possam ser abreviados. Isto vale também para o conto degenerado em "short story".

Walter Benjamin:
Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story (...)

2.

Otto Maria Carpeaux:
Dispõe da experiência das lendas medievais, dos contos de fadas gregos, das fábulas egípcias; narra, uma vez, em ligeiro revestimento a história egípcia da humilhação maravilhosa do faraó Psamênite pelo rei Cambises; o conto mais velho do mundo (Heródoto, III, 14), reproduzido mil vezes, comentado por Boccaccio e Mongaigne, Pascal e Spinoza, interessante desde 3000 anos e inteiramente novo na boca de Lesskov: como os grãos de semente que dormiam 3000 anos no seio das pirâmides egípcias, sem perder a força de germinar.

Walter Benjamin:
Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

3.

Otto Maria Carpeaux:
Romance é livro para ser lido; conto é história para ser narrada. O conto pertence, por origem, à literatura oral, àquela imensa literatura de fábulas, lendas, histórias populares, à "pequena literatura" dos folcloristas, seio maternal de todas as literaturas cultas. O conto, nas origens, não é para ouvintes cultos, e sim para populares. Cronológica e sociologicamente, o conto é mais velho que o romance. O romance é impossível antes da invenção da tipografia: é produto duma época individualista, em que os leitores se isolam em gabinetes de leitura, os intelectuais se isolam como classe especializada (...)

Walter Benjamin:
O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa —contos de fada, lendas e mesmo novelas— é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado (...)


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