Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Relato ágil esmiúça investigação do 'caso das mãos amarradas'

"Fora Castelo, Abaixo a Ditadura". Há 50 anos, essas eram as palavras de ordem que Manoel Raymundo Soares imprimiu em folhas recortadas de jornal. Usou miolos de pão amanhecido para confeccionar as letras de seus efêmeros carimbos. Num varal improvisado no meio da sala de um pequeno apartamento, pendurou os panfletos artesanais.

Queria distribuí-los quando o marechal Humberto Castelo Branco, que então encabeçava a ditadura militar, chegasse à capital gaúcha naquele 11 de março, uma sexta-feira.

Não deu certo. Carregando os papéis de protesto, Manoel foi preso e torturado.

O corpo dele apareceu boiando no rio Jacuí, na altura da Ilha das Flores, quase no rio Guaíba de Porto Alegre, em 24 de agosto de 1966. Tinha as mãos amarradas para trás.

arquivo libretos/divulgação
Enterro de Manoel raymundo Soares, morto pela ditadura depois de planejar protesto
Enterro de Manoel Raymundo Soares, morto pela ditadura depois de planejar protesto

Da prisão até esse momento, três pedidos de habeas corpus foram encaminhados pela sua libertação. Autoridades mentiram, afirmando que Manoel não estava preso. Da Ilha do Presídio, ele conseguia enviar cartas para sua mulher, a operária Elizabeth Simão, a Betinha. Relatou torturas e denunciou seus agressores.

O "caso das mãos amarradas" expôs com dramaticidade a escalada ditatorial em curso no país. Ali já aparecia a atuação ilegal e perversa dos órgãos de repressão.

Mas, diferentemente de muitos outros assassinatos no futuro, o episódio teve ampla cobertura da imprensa, atuação independente de um promotor e de alguns policiais e uma passeata cortando a cidade. Até uma CPI debateu o fato. O AI-5 ainda não vigorava.

Cinquenta anos depois de seu trágico epílogo, a saga é reconstituída pelo jornalista gaúcho Rafael Guimaraens em "O Sargento, o Marechal e o Faquir" (editora Libretos).

Manoel é o sargento; o marechal é Castelo Branco; e o faquir é o informante que denunciou Manoel. Cruzando as três trajetórias, o livro conta um capítulo bárbaro da ditadura militar.

GUERRILHA DE CAPARAÓ

Manoel nasceu num bairro pobre de Belém do Pará em 1936. Estudante e leitor voraz, resolveu tentar a vida no Rio de Janeiro. Lá, passou a frequentar a biblioteca e o Theatro Municipal, onde virou um apreciador de música clássica.

Na então capital federal, acompanhou as manifestações da campanha "O Petróleo é Nosso" e a comoção gerada pelo suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Entrou no exército e se destacou: entre outras qualidades, sabia escrever bem. Viu a política polarizada nos quartéis –e tomou lado, mobilizando sargentos.

Chegou a participar do Partido Comunista, mas logo, como centenas de militares da época, ficou com os nacionalistas que tinham Leonel Brizola como ícone. Foi cassado pelo golpe de 1964, mas não deixou a militância.

Seu grupo buscou organizar ações militares para deter a ditadura, articulando sem sucesso levantes em quartéis. Depois, se dedicaria a estruturar a frustrada guerrilha de Caparaó, ocorrida em 1967. Manoel acompanhava os planos e se angustiava com as sucessivas derrotas e os avanços da ditadura.

Queria fazer alguma coisa. Por conta própria, foi elaborar os panfletos "Fora Castelo", narra Guimaraens, 60, autor de obras sobre política e cultura no Rio Grande do Sul e organizador de "Coojornal, um Jornal de Jornalistas sob o Regime Militar" (2011).

Com um texto meticuloso, o livro esmiúça a investigação policial e o trabalho corajoso do promotor Paulo Claudio Tovo. Com dinâmica ágil, o relato traz as ameaças sofridas pelos que buscavam descobrir a verdade –e mostra como eles contornaram obstáculos para produzir informação.

Também conta as manobras que a repressão usou para tentar desviar as apurações. Instrumentalizando a imprensa, mentindo, criando falsidades, os algozes de Manoel e seus protetores ensaiaram as práticas tenebrosas que virariam rotina nos anos seguintes.

Manoel morreu em 13 de agosto de 1966. Os acusados pela sua morte nunca foram punidos. Por mais de 30 anos a viúva requereu pensão e indenização pela morte do marido. Somente em 2005 a União foi responsabilizada pelo assassinato.

Betinha morreu quatro anos depois sem receber a quantia a que teria direito.

O SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR
AUTOR Rafael Guimaraens
EDITORA Libretos
QUANTO R$ 35 (272 págs.)


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