Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Na música, Brasil já provou seu potencial, escreve diretor da Osesp em catálogo de turnê

Na próxima semana, a Osesp inicia sua sexta turnê europeia. O giro inclui apresentações nos festivais de Edimburgo (22/8), na Escócia, Lucerna (26/8), na Suíça, e no BBC Prom, em Londres. Fundado em 1895, o evento britânico é um dos mais importantes no calendário da música erudita internacional.

Em texto de apresentação para o programa do festival, escrito originalmente em inglês e traduzido abaixo para o português, o diretor artístico da Osesp, Arthur Nestrovski, analisa o repertório escolhido.

*

LEIA ABAIXO A APRESENTAÇÃO DE NESTROVSKI

A música popular brasileira tem papel crucial na vida do nosso país. Não se pode discutir história do Brasil sem mencionar a importância desse repertório. Assim como não se pode falar da Inglaterra das últimas décadas sem mencionar The Beatles, Rolling Stones ou David Bowie, para entender o Brasil é preciso ouvir e discutir os choros de Pixinguinha, os sambas de Caymmi, Ary Barroso, Cartola e Nelson Cavaquinho, vários gêneros irresistíveis de dança como o frevo e o baião, a sofisticação cool da Bossa Nova de Tom Jobim, seguida de uma geração de poetas e compositores como Chico Buarque e Edu Lobo, dos choques estridentes do tropicalismo de Caetano Veloso e da negritude mineira de Milton Nascimento, até chegar às luminosas criações de Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti e à cosmopolita vanguarda paulista.

A cultura brasileira deve muito de sua identidade moderna à força de invenção desses mestres da música e da poesia, cujas obras ouviremos esta noite, em arranjos especiais para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), com 17 músicos convidados da Orquestra Jazz Sinfônica, sob a regência de Marin Alsop, diretora musical da Osesp.

Começamos com Estrepolia Elétrica (1976), de Moraes Moreira, uma das figuras-chave do carnaval baiano. Abre como uma marcha-rancho, imitando os velhos grupos que desfilavam em procissão carnavalesca no início do século 20, depois se transforma num frevo delirante.

Joel Silva/ Folhapress
SAO PAULO, SP BRASIL- 15-08-2016 : Ensaio da Orquestra de Sao paulo, Osesp, regido pela titular Marin Alsop e com participação da solista Gabriela Montero (piano). ( Foto: Joel Silva/ Folhapress ) ***ILUSTRADA *** ( ***EXCLUSIVO FOLHA***)
Ensaio da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo regido pela titular Marin Alsop

Já 1x0 (1949), de Pixinguinha e Benedito Lacerda, é um exemplo tardio de choro, estilo instrumental predominante no Rio há cem anos. Misturando harmonias europeias com ritmos sincopados africanos, e tingindo o virtuosismo de uma discreta melancolia, homenageia Friedenreich, primeiro craque do futebol brasileiro, que marcou um gol contra o Uruguai na primeira final disputada pela seleção, em 1919. (Aplausos para a solista de sax soprano, Paula Valente.)

O número seguinte reúne dois símbolos de uma grande tradição de acordeonistas nordestinos: Dominguinhos (em parceria com Gilberto Gil) e Sivuca (com a mulher, Gloria Gadelha). Primeiro, Lamento Sertanejo (1967); depois, Feira de Mangaio (1979), um baião ou, mais especificamente neste caso festivo, um forró.

Foi Gil quem um dia chamou Dorival Caymmi de "Buda Nagô", aludindo não só à religião afro-brasileira desse outro baiano essencial, mas também às qualidades de sabedoria, originalidade e atemporalidade de seu cancioneiro. História de Pescadores(1965) é uma suíte que descreve a vida numa comunidade de pescadores, alternadamente grandiosa e trágica. Vamos escutar as duas seções finais: "Velório" e "Canção da Partida", em arranjo feito pelo filho do compositor - ele mesmo um grande nome da nossa música, Dori Caymmi.

Existem muitos tipos de samba no Brasil. Nelson Cavaquinho e Cartola praticavam um estilo menos extrovertido, muitas vezes atormentado, e poderoso, embora menos conhecido que os sambas de alegria, mais difundidos fora do país. Folhas Secas(1975) é uma canção de lamento pela perda da juventude e faz uso pungente de linhas cromáticas descendentes; O Sol Nascerá(1961) toma a direção oposta, com linhas ascendentes que celebram os contentamentos da maturidade.

O surgimento da Bossa Nova no final dos anos 1950 assinalou um novo tempo para o Brasil e incorpora muitos ideais que o país até hoje jamais concretizou completamente. Por um curto período, tais ideais se realizaram na música, na arquitetura, no futebol, para não falar da política democrática e da educação pública. Garota de Ipanema (1961), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, permanece o símbolo acabado desse estilo, leve e profundo ao mesmo tempo. A letra fala do desejo impossível de um homem mais velho por uma garota que passa; e a canção se alterna, quase como num filme, entre a visão da moça (primeira e última partes) e as intuições de mortalidade do poeta (parte central).

Seguindo os passos de Jobim, mas já sob as circunstâncias muito diferentes de uma ditadura militar (1964-1985), surgiu toda uma nova geração de compositores brilhantes, com destaque para Chico Buarque e Edu Lobo. Ambos são parceiros emBeatriz (1983), composta para um balé inspirado pelo poema surrealista O Grande Circo Místico, de Jorge de Lima. A letra fala da vida enigmática de uma atriz, ao passo que a melodia descreve um imenso arco, da nota mais baixa (na palavra "chão"), à mais alta ("céu"). Neste lindo arranjo de Nelson Ayres, é a viola quem canta (tocada por Horácio Schaefer, spalla das violas da Osesp).

Ao mesmo tempo como homenagem e confronto com a Bossa Nova, o Tropicalismo de Caetano Veloso irrompeu na cena destinado a mudar para sempre a música brasileira. Sons industriais, slogans e guitarras elétricas aparecem lado a lado com elementos arcaicos da cultura nordestina e estilos internacionais de ponta. O papel do artista também como ativista se tornava evidente num contexto político tenso. Logo depois de compor Tropicália (1968) - visão aterradora da nova capital, Brasília - Caetano foi obrigado a se exilar. Juntamente com Gil, mudou-se para Londres, onde ficou por um ano.

Depois da Bossa Nova e do Tropicalismo, qualquer coisa podia acontecer. E aconteceu. Milton Nascimento, por exemplo, que veio do interior barroco de Minas para acrescentar tons afro-brasileiros altamente originais a uma nova música popular mais próxima do rock e do jazz. Cantor extraordinário, ele se transformou em estrela internacional com uma lista de parceiros como Wayne Shorter, Paul Simon, Herbie Hancock e James Taylor, e é um dos nomes centrais da música nos anos 1970 e 80, autor de canções épicas como Milagre dos Peixes (1973).

Os anos 1970 também testemunharam o surgimento de instrumentistas virtuosísticos como Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti. Músicos enciclopédicos, formados tanto pela vanguarda clássica como pela música folclórica e popular, ajudaram a desenvolver o que hoje se transformou numa verdadeira linhagem de música instrumental no Brasil. O arranjo de Bebê, de Hermeto Paschoal, e de Frevo, de Egberto Gismonti, foi escrito por André Mehmari, ele mesmo um dos principais músicos da nova geração de São Paulo.

Não se poderia encerrar esta breve antologia da música brasileira sem falar da mais icônica de todas as canções, Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso. Composta durante o regime de Getúlio Vargas, foi muito usada para promover o patriotismo. Independentemente disso, parece mesmo tocar num ponto nevrálgico do país, onde se misturam orgulho desbragado e alegria sensual, ainda que triste, e onde muitos polos antagônicos da cultura brasileira parecem afinal se reconciliar.

O país ainda tem um longo caminho pela frente até dar conta de sua própria história e seu próprio potencial. Na música, porém, já deu infinitas provas do que pode ser realizado. Ela segue como fonte de inspiração para todos nós, que acreditamos numa sociedade inclusiva; e nos dá a chance de desfrutar, por alguns momentos que sejam, de uma vida livre, sob o sol do Brasil.

ARTHUR NESTROVSKI é o diretor artístico da Osesp.

Tradução de JAYME DA COSTA PINTO, revista pelo autor.


Endereço da página:

Links no texto: