Folha de S. Paulo


Olimpíada inspira debate sobre fim da representação de corpos perfeitos

No calor desta Olimpíada, telas de TV e dos celulares plugados na disputa por medalhas que chacoalha o Rio não terão descanso dos corpos torneados dos atletas em altíssima definição. Em primeiro plano, gotas de suor viram cristais cintilantes escorrendo pelos músculos.

Mas, quando as câmeras recuam, a obra de arte em maior evidência nos Jogos em nada lembra a perfeição sarada dos esportistas. A imagem ampliada de um trabalho de Adriana Varejão virou uma pele plástica envolvendo o centro aquático do evento. Nela, estão visões de azulejos portugueses com figuras monstruosas num turbilhão, uma espécie de maremoto mítico.

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Replica romana do séc. 2 do discobolo grego de Myrón
Réplica romana do séc. 2 do discóbolo grego de Myrón

"Sem dúvida, meu corpo não é esse corpo olímpico", reconhece Varejão. "Trabalho o corpo imperfeito, bem diferente disso. Tem um elemento barroco, erótico, que fala de uma identidade mestiça."

Outras obras escaladas pela direção artística dos Jogos, como o enorme anel de acrílico que a japonesa Mariko Mori instalou no alto de uma cachoeira, também passam ao largo de representações realistas do esporte, lembrando que a arte, pelo menos desde a modernidade, aposentou sua fixação pelo corpo sobrepujante, heroico ou perfeito.

"O último corpo apolíneo mesmo é o do Davi do Michelangelo", diz o crítico de arte Rodrigo Naves. "Esse corpo ideal é quase divino. É uma noção de beleza baseada num cânone que acabou sendo engessado pela academia."

Naves, no caso, lembra os ideais de beleza forjados na Grécia, berço das Olimpíadas.

Escultores que viveram há mais de dois milênios, como Fídias e Policleto, criaram ali um método de representação do corpo humano que exaltava a beleza dos músculos em movimento respeitando ao mesmo tempo critérios rígidos de medidas e dimensões –a ideia, por exemplo, de que um tórax tem altura equivalente a três cabeças ou que a envergadura dos braços deve ser igual à altura do corpo todo.

Uma síntese visual de tudo isso surgiu no século 15 pelas mãos de Leonardo da Vinci e seu homem vitruviano. O famoso bonequinho pelado desenhado dentro de um círculo e de um quadrado servia de método para ilustrar as proporções perfeitas da figura humana e base a ser seguida tanto em termos de escala para a arquitetura quanto na representação plástica do homem.

No Renascimento, com dissecações de cadáveres a todo vapor, os corpos apolíneos dos gregos reapareceram numa dimensão mais científica –musculosos, lustrosos, perfeitos, porém mais próximos de uma arquitetura, já que a estrutura dos ossos e dos tecidos deixara de ser mistério.

Uma vez desbravada essa questão, no entanto, a arte se desinteressou, o que explica a quase ausência do esporte como assunto plástico desde que a modernidade e suas facilidades, do automóvel ao telefone, tornou os corpos imperfeitos.

"Esse corpo vai mudando, não é mais o corpo heroico, forte, da luta", diz a crítica Ana Maria Belluzzo. "Não tem mais a ver com uma visão de atleta, é mais o corpo que se renova."

Ou se reinventa. Desde Frankenstein aos corpos flácidos, e às vezes hiper-erotizados, de Lucian Freud ou Francis Bacon, passando pelo corpo depurado das esculturas de Henry Moore ou mesmo o corpo violentado nas performances de Chris Burden e Marina Abramovic, o esporte parece ter virado do avesso na arte.

Mas há exceções. No auge do art déco, no início do século passado, o brasileiroVicente do Rego Monteiro criou belas figuras estilizadas nadando ou jogando tênis. Nos Estados Unidos, como lembra o crítico Jorge Coli, George Bellows e Thomas Eakins transformaram lutadores em anti-heróis estonteantes, num misto de sedução homoerótica e um espetáculo de força física.

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"Tênis", pintura de Vincente do Rego Monteiro, de 1928

JOGO QUE NÃO ACONTECE

Entre os contemporâneos, como Nelson Leirner, o esporte ressurge, no entanto, carregado de dimensões políticas. Mesmo se dizendo um "pesquisador visual" do assunto, Leirner constrói visões irônicas, como jogos de tênis ou pingue-pongue disputados pela Vênus de Milo ou o Saci Pererê. "O jogo existia, mas não acontecia", diz o artista. "É também um discurso sobre arte, que existe e não acontece."

Nesse ponto, o corpo na arte contemporânea parece surgir menos como representação e mais como um agente real.

Ernesto Neto, que não desenha nem retrata atletas, cria obras que só funcionam na presença do corpo, ou seja, demandam a ação do público, que muitas vezes pode escalar ou adentrar suas estruturas.

"O corpo é muito mais complexo que o esporte, que tem uma visão pequena do corpo", diz Neto. "Os gregos trabalhavam muito mais o físico do que a gente, e a arte já não comunga mais com o esporte."

Jovens artistas como Virginia de Medeiros, que vem tomando hormônios masculinos para uma performance, e Igor Vidor, ex-atleta que faz dos próprios músculos uma espécie de escultura, entendem bem essa questão. "Hoje não existe a representação do corpo", diz Medeiros. "É a incorporação do corpo na obra."


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