Folha de S. Paulo


Pesquisador vigoroso, Tinhorão subestima senso crítico africano

Não há quem possa ignorar, no âmbito da historiografia e da crítica musical brasileiras, o nome de José Ramos Tinhorão, autor de clássicos como "Pequena História da Música Popular Brasileira". Pesquisador vigoroso, também se dedicou ao ensaio literário, à história da imprensa, à cultura popular em geral.

Um tema raro que tem atraído sua atenção é o da presença africana em Portugal, desde o século 15.

É nessa último campo de interesse que se insere este "Rei do Congo - A Mentira Histórica que Virou Folclore".

Flavio Tavares - 22.mai.2014/ ‘Hoje em Dia’
Homem em festa religiosa com a coroa de rei do Congo, em belo Horizonte, minas Gerais
Homem em festa religiosa com a coroa de rei do Congo, em Belo Horizonte, Minas Gerais

Em linhas gerais, o livro começa situando as condições que permitiram a Portugal sua aventura marítima, para depois se concentrar na figura lendária do Preste João, rei cristão do "Oriente", cuja aliança os europeus buscaram por séculos, de modo obsessivo, contra o inimigo muçulmano. Dessa busca é que decorreria (é tese do autor) a exploração ulterior da costa africana pelos portugueses.

Após alcançarem o Congo, estabelecem relações com o potentado local, o manicongo –que logo vem a se tornar cristão, adotando um nome português. Inicia-se, assim, verdadeira linhagem de manicongos católicos, que entraria pelo século 19.

Escravos congoleses levados a Portugal então constituem irmandades de "homens pretos", e passam a coroar simbolicamente "reis do Congo", no âmbito das festas religiosas. O Brasil teria herdado essa tradição, sendo que, de celebração religiosa, a coroação dos reis do Congo evolui para festejo de rua, dando origem às congadas e a danças dramáticas similares.

Apesar de ancorado em robusta pesquisa, o livro tem sabor de promessa não cumprida. Primeiro, porque não chega a ser grande novidade o fundo histórico das congadas, como atesta Câmara Cascudo e o texto dos próprios autos.

Segundo, porque há uma tremenda desproporção entre o estudo da "mentira histórica" e o do "folclore": apenas um dos 32 capítulos é dedicado à congada brasileira.

Tal pressa pode ter levado a uma conclusão precipitada, sem comprovação documental: a de que a tradição dos reis do Congo surgiu pioneiramente em solo português, vindo depois para o Brasil, embora o mais antigo registro de uma coroação de um rei do Congo tenha ocorrido no Recife.

Em vez de determinar uma origem precisa, não seria o caso de refletir mais profundamente sobre o fenômeno do "Atlântico Negro", onde africanos e seus descendentes, dos dois lados do oceano, criam cultura e se influenciam em fluxo e refluxo?

Incomoda mais, no entanto, uma noção que perpassa quase todo o texto: a de que os africanos não estão na posição de sujeitos da própria história. Tudo é consequência da ação dos portugueses.

O povo do Congo não tem senso crítico; não é responsável; confunde santos católicos com suas próprias divindades; representa enfim o papel do inocente bem-intencionado, contra um algoz culturalmente superior.

É essa ideia que está por trás da expressão "mentira histórica" do subtítulo –já que (a leitura sugere) Portugal iludiu uma nação de tolos.

Na introdução, aliás, já podemos ler: "(...) habitada não mais por nômades e negros islamizados, mas por nativos da área do Rio Zaire ou Congo, entregues ainda ao culto primitivo do feitiço".

Nos tempos que correm, não é mais possível admitir esse tipo de abordagem.

O REI DO CONGO
AUTOR José Ramos Tinhorão
EDITORA 34
QUANTO: R$ 49 (232 PÁGS.)


Endereço da página: