Folha de S. Paulo


Relações trabalhistas guiam ficção científica do marxista China Miéville

O que acontece quando um escritor marxista resolve criar um mundo de fantasia? Estivadores de uma raça de homens-sapos entram em greve e resolvem usar sua capacidade de manipular magicamente a água para travar o tráfego portuário, obviamente.

"Eu realmente quis mostrar como seriam as relações trabalhistas num universo fantástico", contou à Folha o britânico China Mièville, 43, durante conversa sobre seu romance "Estação Perdido", que acaba de ser lançado no Brasil. "Outra coisa que sempre me incomodou é que, na literatura de fantasia, muitas vezes o racismo não é só um preconceito –é uma verdade ontológica. Raças não humanas se comportam de um jeito totalmente estereotipado. Mas não vejo por que um estereótipo racista deveria ser mais verdadeiro nesse tipo de mundo do que no nosso."

A narrativa de "Estação Perdido" aborda essas e outras questões político-sociais espinhosas –da natureza do poder num Estado policial ao casamento de conveniência entre cientistas e militares.

Andrew Testa/The New York Times
O escritor China Miéville posa para foto em sua casa, em Londres
O escritor China Miéville posa para foto em sua casa, em Londres

Ao mesmo tempo, o livro tenta enxergar de forma inovadora um dos desafios clássicos da literatura fantástica: a criação de um "mundo secundário", capaz de projetar uma ilusão de complexidade histórica e cultural que rivalize com a do mundo real.

"Eu queria criar um mundo transbordante, cheio de possibilidades e caótico, e me distanciar da ambientação feudal que dominava o gênero", conta Mièville (o prenome "China", por incrível que pareça, não é pseudônimo).

A solução que ele adotou para isso foi misturar uma ambientação superficialmente vitoriana –motores a vapor, ambientes urbanos cheios de névoa e fuligem, carruagens e aristocratas– a pitadas de alta tecnologia e magia (ou melhor, "taumaturgia", como dizem os personagens do romance).

É uma combinação que hoje costuma ser chamada de "steampunk" (algo como "vapor punk"), um rótulo que o britânico relativiza. "Tenha em mente que o livro foi publicado originalmente há 16 anos. O 'steampunk' estava longe de ser uma marca forte como é hoje", lembra ele.

NOMENCLATURA

O título do livro faz referência à grande estação de trem de Nova Crobuzon, uma espécie de Londres alternativa aterrorizada pela misteriosa "epidemia de imbecilidade" na qual a mente de inúmeros cidadãos é simplesmente apagada.

Há ainda ataques de mariposas-libadoras (híbridos de insetos e morcegos que ocupam o nicho ecológico de vampiros mentais), potentes drogas recreativas e um cientista descuidado.

A ambientação sombria e bizarra é acompanhada por um estilo apropriadamente esquisito, com uma nomenclatura inventada que mistura o mágico e o científico. Um exemplo são os padrões de cores e formas nas asas das mariposas-libadoras que servem para hipnotizar suas vítimas, batizados de "onirocromatóforos" (uma referência aos cromatóforos, células especializadas de bichos como camaleões e lulas que lhes permitem mudar de cor e se camuflar –mais o prefixo "oniro-", referente aos sonhos).

"Gosto de criar neologismos, em especial usando elementos do grego", diz Mièville. "Mesmo que o leitor não conheça etimologia o suficiente para interpretar as palavras, elas criam um efeito geral que influencia a atmosfera do texto de um jeito especial."

Mièville ajudou a fundar o partido de esquerda Left Unity e já foi candidato ao Parlamento britânico. Disse acompanhar com preocupação a crise política brasileira. "É particularmente nojento e perturbador ver grupos direitistas que estão implicados em casos de corrupção até o pescoço posarem de salvadores", diz ele.

"Isso não significa fingir que não existem problemas na esquerda –o PT claramente precisa colocar a casa em ordem e ser punido por seus erros, mas isso tem de acontecer num contexto de respeito ao processo democrático. O precedente que está sendo criado é muito perigoso."

ESTAÇÃO PERDIDO
AUTOR China Miéville
TRADUÇÃO Fábio Fernandes e José Baltazar Pereira Júnior
QUANTO R$ 89 (608 págs.)
EDITORA Boitempo


Endereço da página: