Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Imperdível, 'Mamãe' relata o trágico sem sentimentalismo

Nietzsche aponta na origem do teatro –a tragédia grega– um "pessimismo da força", que, em vez da mera lamúria e resignação, celebra a vida apesar da dor e das perdas. Essa essência é uma das qualidades que tornam "Mamãe", monólogo de Álamo Facó, tão imperdível. Ele recria em cena os últimos cem dias de sua mãe, Marpe, entre o diagnóstico de câncer no cérebro e a morte, em 2010.

A dimensão trágica da peça, bem ao gosto nietzschiano, não a arrasta para um sentimentalismo mórbido e depressivo. O ator, também autor do texto e codiretor em parceria com Cesar Augusto, povoa o que seria o espaço da agonia, o quarto hospitalar, de quadros que evocam vitalidade, como um Mick Jagger sorridente, e resistência, como a histórica cena do chinês em frente ao tanque na praça da Paz Celestial em 1990.

Resistência não só à fatalidade da doença, mas também ao burocratismo e a possíveis erros médicos que agravam a via-crúcis das pessoas de quem o sistema de saúde deveria cuidar. A polêmica da chamada pílula do câncer vem à baila, reforçando a crítica.

Sinistra figura essa do "doutor Ladeira", com seu atraso em informar a família sobre a gravidade da situação e, depois, usando a chave do carro para testar com insensibilidade absurda a sensibilidade do pé de Marpe, chamada no espetáculo de Marta, e uma das personagens em que se desdobra Álamo em sua performance notável.

Ele dá voz à mãe e ao que seriam as lembranças dela. Seu leito é representado por cadeiras de policarbonato e vapor, metáfora poética poderosa sobre a vida e o ente querido que agora só existe por entre as neblinas da memória.

E o ator também se transmuta em Lázaro (nome do amigo que Cristo ressuscita), o filho. Com um tipo físico e trajes que evocam a figura esguia e libertária de Jim Morrison, Álamo preenche também de "músicas para acordar do coma" (Doors, Janis Joplin), sua vigília diante do corpo "despetalado" da mãe.

Lançando mão do gênero literário hoje tão em voga da autoficção, autobiografia que mescla fatos reais e imaginários, "Mamãe" universaliza um drama individual, nos lembrando que os sinos da morte dobram por todos nós, e nos convidando à consciência de lutar mesmo diante dos males inevitáveis, denunciar os evitáveis e honrar a vida.

MAMÃE
QUANDO qui. a sáb., às 20h30; até 6/8
ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 14 ANOS


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