Folha de S. Paulo


Gismonti e Gil Jardim organizam obra póstuma de Naná Vasconcelos

Se durante a carreira o percussionista Naná Vasconcelos provou que sua música não tinha limites geográficos ou de gêneros, em seus últimos meses de vida o pernambucano, morto em março passado, aos 71 anos, expandiu também as fronteiras religiosas e espirituais.

Devotou-se aos santos e aos orixás, fez tratamento espiritual no Centro João de Deus, em Abadiânia (GO), e leu incansavelmente o livro de filosofia indiana "Autobiografia de um Iogue", de Paramahansa Yogananda.

Dessa relação com o sincretismo religioso ficou uma obra inacabada. O material, inédito, será transformado em disco, batizado de "O Budista Afrobudista". O álbum deve ser lançado em dezembro, segundo a viúva do músico, Patrícia Vasconcelos.

Os maestros Egberto Gismonti e Gil Jardim, parceiros artísticos de Naná, são os responsáveis por finalizar a obra. Receberam a incumbência do amigo durante o internamento dele no Recife, devido a complicações de um câncer no pulmão.

Jardim vai gravar duas faixas para o CD. Uma delas é "Tentações de São Sebastião", encomenda do diretor José Araújo para o filme "As Tentações do Irmão Sebastião" (2007), mas jamais orquestrada. A melodia, pela vontade de Naná, deve receber a voz de Milton Nascimento.

"No hospital ele me deu as duas melodias e as progressões e me entregou um gravador com coisas que tinha feito", conta Jardim, que guardou as anotações daquela que pode ser uma das principais canções de "O Budista Afrobudista": "Amém e Amém".

A frase que dá título à música foi repetida por Naná durante o tratamento e grafada no epitáfio do músico. A obra, sacra, será criada para vozes (um madrigal), orquestras de cordas e tambores. "A música só tem uma palavra: Amém."

MATERIAL LONGO

Gismonti diz ter uma tarefa difícil no disco "O Budista Afrobudista". "O material que recebi é longo. Eu não tinha referência alguma sobre a obra."

O maestro foi um dos últimos a ver Naná Vasconcelos vivo, no hospital. "Ele insistia em dizer que tinha deixado coisas gravadas para mim", recorda Gismonti.

O pernambucano morreu em 9 de março, um dia depois da visita de Gismonti, e o maestro recebeu o material na semana seguinte. "Mas logo viajei em turnê."

Naná faria parte da série de shows por China, Japão e Coreia do Sul, em abril. As apresentações viraram homenagem ao percussionista. "Consegui uma performance de Naná, em vídeo, e pedi à produção uma tela para projetar as imagens", conta o maestro.

Ao voltar para o Brasil, Gismonti mergulhou aos poucos nos arquivos de Naná. "Fiz quatro divisões do áudio. Cada momento em que via uma ambientação 'x', anotava o tempo, separava, reouvia e escrevia tudo que podia ser."

Em quatro décadas de amizade, Gismonti e Naná dividiram autorias memoráveis, como o disco "Saudades". "Criamos juntos, no ônibus, durante uma turnê pelo Europa, nos anos 1970", diz Gismonti, sobre aquele álbum.

Mas agora a dificuldade é maior: "Ele não está aqui para dizer o que acha". A canção com vozes infantis, percussão e sinos, ainda sem título, deve ficar pronta em dois meses, diz o maestro. "Farei com muito discernimento e calma."

DANÇA

Naná ainda deixou finalizada a trilha de um espetáculo: "O Corpo de Som", da Cia. Dança Vida, de Ribeirão Preto (SP). "Respire Fundo e Diga 33", música da montagem, estará no disco póstumo.

"É um trabalho de escuta às sutilezas sonoras do corpo", explica a coreógrafa Paula Vital. O balé deve estrear entre o final deste ano e o início de 2017. A trilha une ruído e silêncios inspirados nos exercícios terapêuticos de Naná, com base em percussão corporal.

Com Gil Jardim, que conhecia desde 1994, Naná planejava novos trabalhos para este ano, os quais Jardim estuda levar adiante: o disco "Costuras Musicais", a partir do livro "Linha de Costura" (2010), de Edith Derdyk, e uma homenagem aos 70 anos da chegada do fotógrafo francês Pierre Verger à Bahia.

FILME

Desde 2013, os diretores pernambucanos André Brasileiro e Tuca Siqueira vêm gravando o documentário "Caminhos", sobre a carreira do percussionista, que deve ser lançado no final do próximo ano. "O próprio Naná narra as lembranças, desde Olinda, sua cidade de origem, até Nova York", conta Brasileiro.

"Caminhos" conta com imagens atuais e de acervo pessoal do músico, incluindo raridades resgatadas recentemente pela viúva dele. Essa revisita também tem sido base para a criação, no Recife, de um museu sobre o artista. "Tenho reunido parte das coisas que ele deixou em Nova York e no Brasil. Minha ideia é criar um museu vivo, interativo, como a obra dele", diz a viúva.

Responsável nos últimos 16 anos pela cerimônia de abertura do Carnaval do Recife, Naná deve receber da prefeitura da cidade uma homenagem no Carnaval de 2017. Nada foi definido ainda, mas, segundo a Secretaria de Cultura da capital pernambucana, "certamente" haverá homenagens ao "Mestre Naná".

Segundo Patrícia Vasconcelos, a proposta é celebrar o projeto criado por ele -a cada ano, ele regia 500 batuqueiros, de 15 nações de maracatu, com participação de artistas nacionais e internacionais. "Naná deu visibilidade às comunidades do Recife através dos maracatus. E isso precisa ser reverenciado."


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