Folha de S. Paulo


Sessão de encerramento aborda 'tormento de Ana C.' e envolve plateia

Reprodução do acervo Ana Cristina Cesar/IMS
Ana Cristina César foi a homenageada desta edição da Flip
Ana Cristina Cesar

"O tormento de Ana Cristina Cesar foi querer que a linguagem fosse a verdade." Proferida na sessão de encerramento da 14ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no domingo (3), a frase de Vilma Arêas, professora de literatura na Unicamp, sintetiza falas que reverberaram em diversas mesas da festa nos últimos dias.

Arêas, que foi professora de Ana C. quando dava aulas na PUC do Rio, lembra que a aluna –"muito jovem e já brilhante"– ficou impressionada com o poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa –aquele que diz: "O poeta é um fingidor. /Finge tão completamente /Que chega a fingir que é dor /A dor que deveras sente.".

Ana, segundo Arêas, conseguiu conceber o que Pessoa queria dizer. Afinal, "quem consegue entregar para o outro sua subjetividade?", questiona. A poesia seria inexoravelmente um fingimento, "e o poeta, um fingidor".

Mas a poeta, ciente do fingimento, "tinha a utopia de concretizar as coisas impossíveis de seus poemas", comenta Arêas –ainda que não fosse "ingênua a respeito das dificuldades entre o escrito e o vivido", complementa Sérgio Alcides, acadêmico e crítico literário.

SEGURAR A VERDADE

Mesmo na obra crítica de Ana há indícios de sua resistência "à ideia de literatura superconfessionalista, baseada no imediato", diz Alcides. Ele exemplifica a afirmação com uma crítica que Ana escreveu sobre um romance de Antônio Carlos Villaça (1928-2005).

"O texto é um derramamento de discurso", teria publicado a "mulher de 20 e poucos anos" em um jornal. "Ela satiriza o autor e a intenção dele ser centro de sua arte. Eu não sei em que hospital ele se internou depois dessa crítica", brinca.

Ele explica que existe uma "perda de experiência vivenciada" enquanto houver "o desejo de abordar tal experiência pela literatura". A vida, assim, se esvazia nas palavras, e Ana "deseja segurar a verdade".

Não à toa, diz, Ana apresenta documentos da intimidade em um espaço público –diários, anotações etc.– e se apropria de discursos diferentes –versos mais prosaicos, prosa mais metafórica. "Ela está ocupada com a contaminação dos gêneros, o que cria incômodos e sensações interessantes", afirma.

Arês aponta que, quem lê Ana Cristina Cesar, percebe que o desejo de abarcar a verdade gera uma grande carência na vida dela: ser amada. Parafraseando Walt Whitman –"Companheiro, este não é um livro/ Aquele que toca isto toca um homem"–, diz que "Ana queria que repousasse nas mãos do leitor não o livro, mas ela própria".

Em certo momento, Arêas recita "Ana Cristina", poema de Cacaso (1944-1987), grande nome da geração mimeógrafo, escrito após o suicídio da poeta, em 1983 –e se emociona nos versos: "Ana Cristina cadê seus seios? /Tomei-os e lancei-os /Ana Cristina cadê seu senso? /Meu senso ficou suspenso /Ana Cristina cadê seu estro? /Meu estro eu não empresto /Ana Cristina cadê sua alma? /Nos brancos da minha palma /Ana Cristina cadê você? /Estou aqui, você não vê?"

Ao fim da mesa, Paulo Werneck, curador da Flip, convidou o público a recitar, em alto som, os últimos versos do poema de Cacaso. "Ana Cristina, cadê você?", perguntou. Todos na tenda e no telão do lado de fora responderam: "Estou aqui, você não vê?".


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