Folha de S. Paulo


Mulheres protestam contra ausência de escritoras negras na Flip

Bruno Poletti/Folhapress
RIO DE JANEIRO, PARATY, 29.06.2016: Roberta Estrela D Alva - Sarau de Abertura da Flip 2016, com projecao de Jamais Temer no telao projetado por manifestantes contra o governo Temer. (Foto: Bruno Poletti/Folhapress, FSP-COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FOLHA***
Roberta Estrela D'Alva - Sarau de Abertura da Flip 2016

"Metade da população é negra. 100% da programação da Flip é branca", gritava uma manifestante na tarde deste sábado (2), em Paraty. Seu grito era um de vários nas manifestações ouvidas pela cidade, como o recorrente "Fora, Temer".

"Pela primeira vez, uma edição da Flip se abre ao debate da representatividade com uma homenageada mulher [a poeta Ana Cristina Cesar] e a tentativa de aumentar o número de convidadas mulheres, mas não inclui sequer uma mulher negra", diz a cientista social Ana Carolina Lourenço, 25. "A Flip tem o potencial de encabeçar o debate e acabar com a falta de diversidade do mercado editorial, inclusive com mesas com esse tema e pensando medidas para trazer mais pessoas negras para o público da Flip."

A crítica, que já vinha sido debatida em redes sociais antes do início da Flip, foi objeto de duas cartas abertas de grupos de mulheres negras.

Na semana passada, o Grupo de Estudo e Pesquisa Intelectual Negra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) publicou uma carta aberta à Flip, com um questionamento no título: "Cadê as nossas escritoras negras na Flip 2016?".

"É um absurdo que (...) naturalizando o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando autores da raça negra que infelizmente não puderam aceitar o convite. A procura de planos A, B, C diante destas supostas recusas relaciona-se à falta de compromisso político da Flip com múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais", diz o texto, que define o evento literário como um "Arraiá da Branquidade".

O protesto também foi registrado na página "blogueiras negras", que observa um discurso "pró-representatividade marcado pela inação" por parte da organização da Flip, no texto "Na Flip das mulheres também não fomos convidadas".

O curador da Flip, Paulo Werneck, reconhece o problema e diz estar aberto ao diálogo. Ele afirma ter convidado vários autores e personalidades negros, como Mano Brown e Elza Soares, mas não conseguiu levar as negociações para frente. "Eles teriam um tratamento igual à [autora bielo-russa] Svetlana, com uma mesa só para eles", afirmou. "Mas foi uma estratégia que falhou. Também admito que há muitos autores negros que eu não conheço. Preciso conhecer, ler e conversar com eles."

Em uma mesa nesta sexta (1º) em Paraty, o escritor e pesquisador norte-americano Benjamin Moser observou que não havia nenhuma pessoa negra na plateia. Foi aplaudido. Ao ver que apenas três pessoas negras levantavam a mão, concluiu com uma ironia. "Ah, três negros numa plateia desse tamanho. Então tá, parece que deu tudo certo mesmo", disse, voltando a ser ovacionado.

Em uma coletiva de imprensa após a mesa, Moser disse que ajudou o curador da Flip, Paulo Werneck, a convidar escritores negros. "Mas eles não puderam vir. Não foi por falta de tentativa."

Para a cientista social que protestava nesta tarde em Paraty, Werneck "não poderia dormir até conseguir fazer uma Flip em que a maior parcela da população brasileira estivesse representada".

'NÃO ME USEM'

A atriz, diretora e slammer Roberta Estrela D'Alva, convidada de última hora pela organização da Flip para apresentar o sarau de abertura do evento, diz que aceitou o convite, mas pediu para não ser usada pela organização como justificativa diante da observação de que o evento literário não tem autores negros convidados. Seu nome não havia sido anunciado na coletiva de imprensa da Flip, em maio, quando todos os autores são anunciados.

Ela diz que já iria de qualquer forma a Paraty durante a Flip para mediar uma mesa na programação paralela. "Eu aceitei apresentar o sarau desde que pudesse decidir quem estaria, fazer do meu jeito. E que eu não fosse usada pela organização para falar: 'agora temos um autor negro'."

Werneck diz que não quis usar o convite "para cumprir cota de autores negros". "Disse à equipe: 'Tem essa ausência. Vamos deixá-la como reflexão'. Teria sido simples chamar alguém de última hora, mas não quisemos fazer isso."


Endereço da página:

Links no texto: