Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Nobel, Svetlana dá voz autêntica a mulheres contra Hitler

Sergei Grits/Associated Press
Belarusian journalist and writer Svetlana Alexievich the 2015 Nobel literature winner, waves to journalists as she leaves after a news conference in Minsk, Belarus, Thursday, Oct. 8, 2015. Belarusian writer Svetlana Alexievich won the Nobel Prize in literature Thursday, for works that the prize judges called
Svetlana Alexievich, escritora vencedora do prêmio Nobel

"Não se pode mais narrar", escreveu Theodor Adorno (1903-1969) poucos anos após o fim da 2ª Guerra Mundial. Um dos efeitos da guerra para a literatura foi acabar de vez com a ilusão de um mundo comum, de uma narrativa única para a humanidade. Mesmo a não ficção, que poderia oferecer uma saída objetiva para o impasse, se viu engasgada com a artificialidade do relato estruturado em torno de um enredo.

Pois o que se perdeu ao longo do século 20 é o que melhor define a escrita da autora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch: autenticidade. Foi preciso que o prêmio Nobel a revelasse ao resto do Ocidente em 2015 e a colocasse em igualdade com o que move hoje a escrita literária.

Ria Novosti/AFP
ORG XMIT: 200401_0.tif WITH AFP STORIES ON 60TH ANNIVERSARY OF WORLD WAR II IN EUROPE (FILE) This file picture taken 01 May 1945 shows a Soviet woman soldier saluting on a street of Berlin. AFP PHOTO / RIA NOVOSTI
Militar soviética em Berlim, em 1º de maio de 1945

USAVAM CUECAS

Em "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", Svetlana costura, 40 anos após os eventos, relatos de soviéticas que combateram na guerra contra o Exército de Hitler –estima-se que foram 1 milhão.

Eram enfermeiras, tratoristas, sapadoras, cirurgiãs, cozinheiras, lavadeiras, e também soldados da infantaria e cavalaria, atiradoras, operadoras de baterias antiaéreas, aviadoras, marinheiras.

Em geral, se alistaram voluntariamente, às vezes contra a vontade dos comandantes do Exército Vermelho, algumas no início da adolescência, com 13 anos. Vestiam fardas masculinas. Usavam cuecas. Cortavam tranças e cachos bem curtos.

Marchavam enquanto "começaram a aparecer manchas vermelhas na areia... Um rastro vermelho... Bem, era a...", diz uma das veteranas. Outras deixaram de menstruar por quatro anos, e ganharam cabelos brancos antes dos 20.

As que sobreviveram, voltaram às suas cidades de origem e foram alvo de preconceito e desprezo: eram as "p... do front. Cadelas militares...", envergonhavam as famílias, não arranjavam emprego, muitas não se casaram.

A Guerra Não Tem Rosto De Mulher
Svetlana Aleksiévitch
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Como exigência da autenticidade narrativa, parece ser apenas cabível um livro de gênero híbrido como esse: é reportagem, colagem, diário, mas também quase um romance, polifônico e de múltiplos enredos. Não seria possível que apenas se registrasse as histórias terríveis que essas mulheres guardaram por décadas (uma mãe que afoga o bebê de colo que chora para não revelar aos alemães a posição do grupo; um soldado que pega um bebê e o mata batendo-o contra uma barra de ferro na rua).

Também não se poderia reescrever em outro contexto aquilo que viveram (o cheiro de sangue que não desaparece nunca, a aversão pelo vermelho, a tortura, a fome, a humilhação). Suas histórias estão no limite do humano. Não há espaço para interpretações.

Chamada Flip

Ainda que antecipe escolhas da literatura contemporânea, "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher" é marcado pelas preocupações e visões de mundo do século 20 na União Soviética (a primeira versão foi publicada em 1985 e atualizada no começo dos anos 2000). Mas o século passado não estaria completo sem ele. Encontramos em Svetlana Aleksiévitch uma nova maneira de olhar para trás, e de narrar o presente.

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER
AUTORA Svetlana Aleksiévitch
TRADUÇÃO Cecília Rosas
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,90 (392 págs.), e-book (R$ 30,90)

ROBERTO TADDEI é autor de 'Terminália' (Prumo/Rocco, 2013), entre outros


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