Folha de S. Paulo


Ocupações estudantis roubam a cena em debate sobre exibicionismo social

Com o sugestivo título de "O Show do Eu", era esperado que a mesa entre Christian Dunker e Paula Sibilia na 14ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), na tarde de sexta (1º), fosse uma discussão sobre como a humanidade traçou seu percurso de evolução até chegar ao pau de selfie. E começou assim, mas terminou melhor.

Sibilia, autora do trabalho que deu nome à mesa, explicou que o tal show é a forma como, há alguns anos, a sociedade tende a "se exibir e se vender como um espetáculo", abdicando de sua privacidade –ou, ainda, "editando a vida que se mostra".

As redes sociais comprovam a teoria, mas a antropóloga argentina radicada no Rio de Janeiro vai além: "Antigamente isso seria considerado de mau-gosto, até mesmo imoral". Ela lembra que os adventos tecnológicos –e aqui entra a selfie e seu pau– são ferramentas inventadas porque "o que o outro enxerga de nós –e ajuda a definir o que nós somos– ganhou maior importância". Enquanto isso, diz, "o Eu vai se afastando do seu âmago, se deslocando para fora, como na idealização do corpo."

"Se a gente fosse perguntar quando começou o show, eu lembro de Narciso", complementou Dunker, professor titular de psicologia da USP e autor de "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: A Psicopatologia do Brasil entre Muros". "O oráculo disse a Narciso que será feliz quem não se conhecer." Mas aí Narciso vê sua imagem na água e, ao se conhecer, acaba morto.

"Há o protagonista, a plateia –o outro– e a crítica que fazemos de nós mesmos e do outro. Esses três elementos compõem o eu", ressalta Dunker, que vê um certo "narcisismo à brasileira".

"É a vida em forma de condomínio", ele explica. "A ideia de que o outro se tornou perigoso, uma figura de quem a gente não deve se aproximar. Para resolver esse impasse, o Brasil criou uma coisa estranha: o muro. É o que nos separa, nos deixa seguros e nos torna invisíveis."

Mas nós pulamos o nosso próprio muro: expomos nossa privacidade por meio das redes. "A intimidade era valorizada", diz Sibilia, "mas a sociedade aprendeu a mais-valia da imagem".

Tal exposição cria imagens distintas uns dos outros, dizem os autores, o que contradiz ideias de que "somos todos iguais". E, por isso, uma educação igual perde sentido.

"As crianças se autoeducam pela internet", diz Dunker, "e a escola parece desnecessária". Tanto que "a educação está em crise", complementa Sibilia.

"Escola significava regras", lembra o psicanalista, "e hoje praticamente todos duvidamos dessas regras –chegar cedo, estudar para ser bom cidadão–, inclusive alunos, pais e mesmo os professores".

OCUPAÇÕES

Como o assunto era educação, foram lembradas as ocupações de escolas que ocorrem em diversas cidades brasileiras, inclusive aqui em Paraty. Há aproximadamente dois meses, cerca de 50 alunos ocupam o Cembra (Colégio Estadual Engenheiro Moura Brasil do Amaral), localizado no centro histórico da cidade –a poucos metros da tenda dos autores, onde ocorre o diálogo.

Sibilia acredita que as ações dos jovens são excelentes porque "mostra que há frestas", que "eles não querem carcaças de discurso, pseudo-aulas..."

"O que é interessantíssimo", afirma Dunker, "porque os alunos eram de quem menos esperávamos [as manifestações em prol da educação]: do aluno esperava-se o tédio". Ele lembra que, na psicanálise, o termo "ocupar" equivale a "desejar".

Sibilia ressalta que a passagem do conhecimento entre professor –figura de autoridade– e aluno –receptáculo do saber– nunca aconteceu como se imaginou. "Mas nos últimos tempos estava patinando ainda mais", sobretudo porque valores –que se traduzem em regras como que hora entrar em aula, o que estudar, como se comportar– se tornaram obsoletos. "A gente tem que ouvir muito o que os alunos têm a dizer", pois eles "demandam um novo sentido às paredes que os cercam."

"Ouvir" foi um verbo bastante usado no debate –e bastante ignorado pelos pais, de acordo com Dunker. Para o psicanalista, "hoje nossas crianças são educadas, criadas, mas a gente não fala mais com elas" e, com isso, "você continua administrando o mundo para seu filhinho e depois quer que a escola tome conta".

Chamada Flip

Sibilia concordou: "Crescer é passar por conflitos, se reformular, e não deixar permanecer a imagem perfeita que os pais introjetam nas crianças".

"Existe a ideia de que 'se estão calmas, estão bem'", diz. "Com isso, o Brasil é um dos campeões do consumo de Ritalina". Dunker arranca aplausos com uma pergunta que reverberou tanto dentro quanto fora da tenda: "Por que desejamos tanto silenciar nossas crianças?"


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