Folha de S. Paulo


'Brexit é um retrocesso imenso, estou chocada', diz inglesa que criou a Flip

Para a idealizadora da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), a britânica Liz Calder, 78, é muito provável que a turbulência política no Brasil e no Reino Unido surja nos debates e no evento de modo geral.

"Estou chocada e triste com o resultado do plebliscito em meu país", afirmou, comentando a votação que decidiu que o Reino Unido deixará a União Europeia, na semana passada. Sobre o Brasil, diz que "é uma pena que se esteja arrancando do poder a primeira presidente mulher".

Calder descobriu Paraty nos anos 1960, quando viveu em São Paulo, atuando como jornalista e modelo.

Conhecida por ter descoberto e lançado a série best-seller "Harry Potter", de J.K. Rowling, e apadrinhado a carreira de outros escritores de renome, como Salman Rushdie e Julian Barnes, Calder idealizou a Flip, cuja primeira edição ocorreu em 2003.

Danilo Verpa/Folhapress
Retrato da fundadora da Flip, a inglesa Liz Calder em Paraty
Retrato da fundadora da Flip, a inglesa Liz Calder em Paraty

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Leia, abaixo, trechos da entrevista que a ex-editora concedeu nesta quarta (29), em Paraty.

Folha - A sra. acha que a política terá um peso importante nessa Flip?
Calder - É bastante provável, uma vez que o Brasil e o Reino Unido estão num estado de turbulência tão grande. Não sei dizer qual dos dois está pior.

Qual sua opinião sobre o Brexit?
Fiquei absolutamente chocada. Estou muito triste, e com raiva. Trata-se de um retrocesso imenso. Voltamos a uma situação de mais de 50 anos atrás. Por que não podemos ser parte dessa união que foi tão importante, que enfim trouxe paz depois de tantos conflitos internos ao longo da história?

E por que acha que esse resultado se deu?
Bem, o plebiscito foi chamado para acalmar a agitação da extrema-direita, que estava inquietando-se. Mas mesmo as pessoas que fizeram a campanha pelo Brexit não esperavam que isso acontecesse. Tanto que eles não têm um plano sobre o que fazer agora. Eles não tinham expectativas para além de provocar barulho com isso.

Sim, mas quem decidiu foi o eleitorado, não?
Sim, acho que os eleitores votaram assim porque de fato há muita bronca no Reino Unido com relação ao governo. E esse resultado mostra também que a disparidade entre Londres e o resto do país aumentou nos últimos tempos. Acontece que, a partir de agora, a partir dessa decisão, não acontecerá nada melhor do que tínhamos. Se os conservadores seguirem no poder, mesmo após uma nova eleição, haverá mais cortes de gastos em coisas básicas, como a saúde. Não é uma decisão que vá melhorar a vida dos pobres. Criou-se uma grande bagunça e o que vem adiante é incerto.

E o Brasil a preocupa também?
Muito, porque é o meu segundo país. Meu filho e meu neto vivem aqui. Estou muito preocupada pelos dois países. Sei que aqui ainda é mais grave a crise econômica. Mas se há uma crise política de grandes proporções, como existe no Brasil e no Reino Unido, o dano que causa aos países é muito grande. Eu mesma não sei o que fazer. Muitos de meus amigos dizem que, com o Brexit, é melhor mudar-se, ir embora da Inglaterra.

Li que há uma fila gigante de britânicos com origem irlandesa querendo agora tirar o passaporte irlandês, para continuarem na Europa.
Sim, isso está acontecendo. Meu caso é parecido. Sou britânica, mas meu marido tem o passaporte alemão. E eu sempre insisti que ele tirasse o inglês, ele se negava. Hoje vejo que talvez seja melhor assim, porque eu é que estou pensando em tirar o alemão agora.

Esta é uma Flip com grande participação de mulheres. Isso nem sempre foi a regra.
Sim. Nós sempre tentamos, sempre nos dizemos que temos que ter mais mulheres, mas por diferentes razões nem sempre acontece. Desta vez aconteceu, o que é ótimo. Obviamente deveria ser sempre assim, mas às vezes os temas, os livros que você quer trazer nem sempre são escritos por mulheres. Creio que, muitas vezes, é preciso simplesmente fazer acontecer. Na Inglaterra, por exemplo, havia tanta controvérsia sobre o Orange Prize (prêmio para mulheres). Muitos diziam que não era necessário, porque não há um prêmio exclusivo só para os homens. E mesmo muitas mulheres não se inscreviam porque achavam que esse tipo de premiação diferenciada não deveria existir. Mas eu não penso assim, acho que é mais um prêmio e isso é algo bom, pois dá visibilidade a mais mulheres.

Acha importante essa ser uma Flip com muitas mulheres quando aqui se está discutindo tanto o feminismo?
Sim, e ainda mais justo neste momento, quando o Brasil está arrancando do poder sua primeira presidente mulher, o que é uma pena.

Há menos orçamento para a Flip neste ano. Isso atrapalha?
Não necessariamente, porque com menos dinheiro você usa mais a imaginação. E a simplicidade é muito boa, a Flip nunca precisou ser cara. A simplicidade é seu conceito desde o princípio. Claro que é maravilhoso ter a grande tenda e a tecnologia. O que temos aqui é melhor do que muitos festivais britânicos, por exemplo. Mas não acho essencial.

Neste ano também há uma homenagem a Shakespeare. Como sente sua atualidade hoje?
Em todas as coisas. Shakespeare é universal, atual, além de muito bom. Vou ler alguns dos sonetos dele amanhã (30). Escolhi alguns e para mim foi ótimo, porque tinha muito tempo que eu havia lido, quando era jovem. E sabe porque os considero fascinantes? Porque são sobretudo sobre amor e cheios de mistérios. Quase metade deles parece endereçada a homens, e há outros para mulheres. Mas todos são sobre lealdade, ciúmes, ou seja, coisas que preocupam as pessoas ainda nos dias de hoje.

Assim como já houve críticas à falta de variedade de idiomas,de editoras, de gêneros, nesta edição as críticas são quanto à falta de autores negros. O que acha disso?
Simplesmente aconteceu. Houve convites, mas não deram certo. Mas tivemos autores negros em outras edições, como a Nobel Toni Morrison e outros. Neste ano aqueles que foram convidados não puderam vir. Nós tentamos ter mais diversidade e mistura. Mas quando você não tem aqueles que quer, não pode trazer qualquer um.

Chamada Flip


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