Folha de S. Paulo


análise

Lei Rouanet permite que empresas se promovam com verba pública

Projetos superfaturados, notas fiscais falsas, produtos fictícios, shows pagos com dinheiro público e realizados em festas privadas. Demorou, mas a Lei Rouanet finalmente virou nesta terça (28) caso de polícia com a operação Boca Livre, da Polícia Federal.

Se antes a maior reclamação da população era o uso de verba pública em projetos de quem, na teoria, não precisaria dela (Rock in Rio, Cirque de Soleil, Maria Bethânia, Luan Santana...), agora a coisa mudou de patamar. Virou crime.

Operação Boca Livre - Cerca de 124 policiais federais participam da operação. Veja número de mandados

Na base de todos os problemas com a Rouanet, está uma grande questão: por que empresas privadas têm o direito de decidir como usar verba pública? O governo permite que empresas usem uma parte do imposto devido —dinheiro público— em projetos culturais. Só que as empresas podem escolher os projetos em que desejam colocar o dinheiro do contribuinte. O financiamento é público, mas a seleção de projetos é privada.

Isso cria distorções absurdas: grandes empresas e seus departamentos de marketing montam campanhas e projetos para divulgar suas marcas, usando dinheiro do contribuinte. Faz sentido?

Na teoria, faria sentido que as empresas dispostas a doar parte de seus impostos para cultura depositassem o valor em um fundo, e que uma comissão governamental escolhesse os projetos contemplados. Mas isso geraria outra questão: em um Ministério da Cultura frequentemente acusado de favorecer os mesmos "amigos" de sempre, essa seleção seria justa?

Pequenos produtores culturais, museus, grupos de teatro e companhias de dança teriam a mesma chance de grandes grupos de entretenimento? Ou continuaríamos a ver o Rock in Rio, um dos maiores festivais de música do mundo, recebendo verba pública?

Faria sentido também que a Rouanet privilegiasse projetos que beneficiassem a coletividade, como a restauração de museus, cinematecas e bibliotecas.

A população não reclamaria em ver seu dinheiro investido na abertura de espaços culturais públicos, mas não suporta mais ler notícias sobre artistas famosos pedindo verba para projetos pessoais ou grandes empresas divulgando suas marcas usando dinheiro alheio.

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ENTENDA A LEI ROUANET

O que é a Lei Rouanet?

Sancionada pelo presidente Fernando Collor em 23 de dezembro de 1991, a lei 8.313 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que implementou mecanismos de captação de recursos para o setor cultural. Um deles é o incentivo à cultura, ou mecenato (que popularmente ficou conhecido como Lei Rouanet).

Como funciona o incentivo cultural?

O governo federal permite que empresas e pessoas físicas descontem do Imposto de Renda valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos, festivais de música, peças de teatro, espetáculos de circo, programas audiovisuais etc. Ou seja, em vez de pagar o imposto da totalidade, você reverte parte dele a um projeto cultural.

Quanto as empresas e pessoas físicas podem destinar a projetos aprovados na Rouanet? E quanto podem deduzir do Imposto de Renda?

Os incentivadores podem ter até o total do valor desembolsado deduzido do imposto devido. Mas há limite: empresas com lucro real podem abater até 4% do imposto devido; pessoas físicas, até 6%.

Assim, uma companhia que deve pagar R$ 1 milhão de Imposto de Renda pode redirecionar a um projeto aprovado na Lei Rouanet até o valor de R$ 40 mil. Já uma pessoa que paga, digamos, R$ 10 mil de imposto pode deduzir até R$ 600.

Valores da Rouanet 2015 - Em milhões

Quem mais capta verba pela lei?

É comum ler por aí —sobretudo nas redes sociais— que "esse artista mama na Rouanet" ou "aquele artista é sustentado pela Rouanet". Mas, segundo informações do MinC, os grandes captadores em 2015 foram produtoras e entidades como museus. Veja:

Incentivo - Quem mais recebeu verba via Lei Rouanet em 2015

Quanto de imposto deixa de se arrecadar com a Lei Rouanet?

De acordo com projeção da Receita Federal para 2016, a renúncia fiscal correspondente à lei de incentivo à cultura —ou seja, o que deixará de ser arrecadado em impostos para financiamento de projetos culturais— será de aproximadamente R$ 1,3 bilhão. O valor representa 0,48% dos cerca de R$ 270 bilhões que o Brasil deixará de arrecadar em impostos com todos os programas de incentivo.

Somada a outras leis de incentivo (como a Lei do Audiovisual), a renúncia fiscal correspondente a programas do MinC será de R$ 1,8 bilhão —0,66% do total de programas da União.

Renúncia fiscal em 2016, por função orçamentária - Em bilhões


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