Folha de S. Paulo


Bill Clegg troca crônica da sarjeta pela ficção em 'Você Já Teve uma Família?'

O americano Bill Clegg, 45, falará nesta quinta-feira (30), em mesa com Irvine Welsh ("Trainspotting"), na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), sobre duas de suas façanhas.

Primeira: a estreia na ficção com o romance "Você Já Teve uma Família?", que ficou entre os finalistas de dois grandes prêmios de literatura, o Man Booker e o National Book.

Segunda: ele estar vivo para escrevê-la. Isso parecia improvável nos anos 2000, quando o promissor agente literário de Nova York se viciou em crack. Na época, dava entrada em hotéis com nomes falsos, acompanhado de prostitutos como Carlos, o "brasileiro escuro" que cobrava US$ 400 a hora.

Jesse Dittmar/The New York Times
Bill Clegg, a literary agent who has written his first novel, â€ÃúDid You Ever Have a Family,â€Ãù at his apartment in New York, Jan. 22, 2015. The novel is about a middle-aged woman struggling to recover from an accidental explosion that destroyed her home and killed her family. (Jesse Dittmar/The New York Times.) ORG XMIT: XNYT64 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Bill Clegg em seu apartamento, em Nova York

Quase toda noite, acabava de joelhos, curvado sobre o carpete, procurando restos de pedras da droga.

Perdeu a dignidade, o emprego, o namorado e 20 kg –em cinco semanas, precisou furar três vezes um novo buraco no cinto.

Chegou a tentar suicídio com vodca, crack e soníferos. Ficou desapontado quando acordou no hospital.

O que Clegg conta à Folha não é segredo: está tudo nas memórias "Retrato de um Viciado Quando Jovem" e "Noventa Dias", publicadas pela Companhia das Letras de 2011 a 2013 –a primeira foi descrita como "'O Apanhador no Campo de Centeio' sob crack" pelo escritor Michael Cunningham, de "As Horas".

A Clegg não incomoda a perspectiva de nunca se livrar do aposto de drogado (citado em dez entre dez reportagens, esta inclusa), independentemente de estar limpo há anos –recaídas, "só com pizza, massa e frango frito". Hoje ele segue tocando sua própria agência, num escritório na luxuosa Quinta Avenida de Manhattan. Dois outros convidados da Flip são seus clientes: o colega de mesa Welsh e Benjamin Moser, autor da biografia "Clarice".

O agente já conhecia Lispector: "Minha última namorada antes do meu primeiro namorado era fã".

Depois da derrocada pública –que virou fofoca em seu meio–, diz não ter "o luxo da privacidade". "E estou muito feliz com isso."

"O maior risco, para mim, é esquecer o quão terrível foi viver aquilo. Sou um 'noia' nas minhas entranhas. Se pedir um drinque, à 0h estarei numa boca de crack." Nesse sentido, "Nova York é um museu da sua vida", diz. "Hoje mesmo passei por um prédio onde costumava me drogar."

A arqueologia de seu vício passa por Sharon, cidade de Connecticut com menos 2.700 habitantes, onde o filho de piloto de avião cresceu.

Ele acha que há "certa nostalgia e mitologia" sobre esses subúrbios parados no tempo, a "fantasia do 'era uma vez...', como se fossem mais virtuosos."

A CASA EXPLODIU

Sharon inspira seu primeiro romance, com todas as tensões sociais e raciais que tremulam junto com as bandeiras americanas fincadas em casas de cerca branca.

A história começa com uma tragédia na fictícia Wells, contada pela ótica de 12 personagens, em esqueleto narrativo influenciado por William Faulkner.

Uma delas é June, 52. Tudo o que ela tem é "a roupa do corpo e o casaco de linho que vestiu 18 dias atrás, quando fugiu de casa".

Na véspera do casamento da filha Lolly, a casa da família explodiu. Morreram os noivos, o ex-marido de June e o atual namorado dela –negro e mais moço, para simultâneos horror e entretenimento das madames locais.

Silas, 15, consumiu "em menos de uma semana" um saco de maconha no bong (aparelho para fumar ervas) vermelho que ganhou de presente do amigo Ethan. "A maior parte durante o trabalho, enquanto arrancava ervas daninhas em canteiros de flores e jardins de nova-iorquinos ricos."

Rick levou aos bombeiros o bolo que a mãe preparou para a festa que nunca aconteceu. A receita era brasileira: coco com laranjas frescas. "Grande e liso, com aquelas bolinhas prateadas comestíveis espalhadas por cima e umas orquídeas roxas."

O trio é uma amostra do universo imaginário de Clegg, embora o bolo replique a vida real: é o mesmo servido em seu casamento com um diretor de comunicação da rede ABC. Conheceu o marido em um centro LGBT, na rua 13 de Manhattan. "Ele se sentou ao meu lado. Achei que era muito jovem e bonito para mim. Fomos os primeiros gays a casar na nossa igreja episcopal."

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NA PIOR COM WELSH

Você Já Teve Uma Família?
Bill Clegg
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Na Flip, o escocês Irvine Welsh, de "Trainspotting", se juntará a Bill Clegg na mesa Na Pior em Nova York e Edimburgo (batizada em homenagem ao livro "Na Pior em Paris e Londres", de George Orwell), na quinta-feira, às 21h30.

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VOCÊ JÁ TEVE UMA FAMÍLIA?
AUTOR Bill Clegg
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
QUANTO R$ 44,90 (264 págs.) e R$ 30,90 (e-book)


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