Folha de S. Paulo


Músicos clássicos trocam partituras de papel por tablets e computadores

Entre as peças exibidas na Real Academia de Música britânica em seu tributo pelo centenário do violinista Yehudi Menuhin, está uma página isolada de uma sonata de violino de Bach. A página impressa está coberta de anotações a lápis de Menuhin, fixando os contornos de uma frase, a direção do movimento do arco, os dedilhados, a direção e a velocidade do vibrato: a expressão, em grafite, da interpretação e da técnica de um músico.

Peter Sheppard-Skaerved, violinista e estudioso que organizou a exposição, afirmou em e-mail que a página cria "um senso de escavação do material, quase como se voltar a trabalhar nele com o lápis pudesse revelar mais, encontrar mais daquele veio de minério que todos buscamos".

Essa busca continua a ter posição central na arte de um músico clássico. Mas hoje em dia existem novas armas. Número crescente de músicos vem usando iPads e laptops em lugar de partituras em papel, especialmente agora que a mais recente geração de tablets oferece telas do mesmo tamanho que uma página padrão de partitura. E instrumentos de escrita virtual como a Apple Pencil, lançada em novembro, estão começando a substituir os lápis e borrachas.

Michael George/The New York Times
FILE â€Ãî Matt Haimovitz sets up handwritten sheet music before a pop-up performance at the Columbia University Bookstore in New York, Oct. 23, 2015. Haimovitz often uses digital versions of original handwritten scores, including Anna Magdalena Bachâ€Ãôs manuscript copy of J.S. Bachâ€Ãôs solo cello suites. (Michael George/The New York Times) ORG XMIT: XNYT127 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Matt Haimovitz ajeita uma partitura antes de tocar na livraria da universidade de Columbia, Nova York

Se, por exemplo durante um festival musical de verão, uma pianista for interpretar um quinteto que conhece bem em companhia de novos parceiros, ela pode salvar as marcações dos companheiros quanto à interpretação em um arquivo de formato conveniente, sem ter apagar suas dinâmicas e tempos pessoais. Um jovem músico profissional, correndo de uma palestra para outra, poderia acompanhar instruções, tradições e dicas técnicas múltiplas, e até mesmo conflitantes.

Mas as vantagens da nova tecnologia não são se limitam a tarefas de apoio. Sheppard-Skaerved aponta que o advento do lápis produzido em massa, na segunda metade do século 19, coincidiu com profundas mudanças na maneira pela qual um músico se envolve com um texto musical. Os músicos que se beneficiaram da nova ferramenta —capaz de produzir marcações duradouras mas que era possível apagar e que não danificavam o papel— foram, escreveu ele, "os primeiros para os quais os ensaios tinham por objetivo aperfeiçoar a execução, em lugar de promoverem o desenvolvimento de capacidades para executar em tempo real o material que estava diante deles, ou de improvisar sem referência à partitura".

Que mudanças a nova tecnologia digital reflete ou permite? Conversações com alguns dos mais apaixonados defensores dos novos aparelhos e com desenvolvedores de software como a forScore e a Tonara, que criam aplicativos para eles, revelam diversos desenvolvimentos. A estrutura tradicional de ensino, de cima para baixo, foi abalada. A linha que separa as esferas de influência do estudo acadêmico e da prática se tornou menos distinta. E a noção mesma de um texto musical definitivo vem perdendo espaço rapidamente —e com ela o ideal de "perfeição na execução".

Uma consequência inesperada dessa virada digital é que ela aproximou os músicos das fontes históricas, que incluem os manuscritos dos compositores. A pianista Wu Han, uma das diretoras artísticas da Sociedade de Música de Câmara do Lincoln Center, disse em entrevista via Skype, de Seul, onde ela estava conduzindo oficinas, que "não é mais como no passado, quando você só tinha a informação que um professor passava. Hoje, todos se tornaram detetives".

Wu se orgulha de ser "pioneira" no uso do iPad, e enumera rapidamente os benefícios para os músicos em viagem. Segundo sua contagem, ela vai executar 42 obras nos próximos três meses. No passado, as partituras necessárias ocupariam três quartos do espaço de uma mala. Agora, ela tem toda uma biblioteca de música em um esguio tablet. Virar páginas se tornou um processo silencioso e elegante graças a um pedal com controle sem fio. (Enquanto no passado os inimigos de Wu eram assistentes desajeitados ao virar páginas, agora eles são as salas de concerto chinesas que empregam sistemas de bloqueio ao bluetooth.) Ela não precisa mais se preocupar com perder partituras ou com a deterioração do papel ao longo de uma turnê extensa. E em suas palestras, ela faz anotações para os participantes em seu tablet, e as arquiva separadamente para cada participante.

Mas aquilo que mais influencia seu trabalho como musicista - a miríade de decisões sobre o passo de uma determinada frase, ou sobre como criar personalidade musical por meio da articulação ou dinâmica —é o trabalho musicológico de base envolvido no estudo de edições iniciais e manuscritos em busca de pistas quanto às intenções do compositor.

"No passado, eu teria de esperar até poder ir à biblioteca, para buscar essas informações", ela disse. Mas agora fundações como a Beethoven Haus, em Bonn, Alemanha estão laboriosamente digitalizando materiais, e ele fica disponível na Internet.

Com downloads gratuitos substituindo as cópias em papel, caras e difíceis de manusear, os músicos cada vez mais leem música diretamente dos manuscritos dos compositores. O violoncelista Matt Haimovitz vem tocando com partituras manuscritas em seu iPad, entre as quais a sonata "Arpeggione" de Schubert, e cópias manuscritas por Anna Magdalena Bach das suítes para violoncelo de seu marido, Johann Sebastian.

Nicholas Kitchen, violinista do Quarteto de Cordas Borromeo, lembra as frustrações de passados encontros com manuscritos, na época em que estudá-las requeria uma visita à sala de documentos raros de uma biblioteca, e o uso de luvas brancas. Como seus demais colegas no Borromeo, ele agora lê os quartetos tardios de Beethoven diretamente do manuscrito, que ele pode exibir —e anotar— em sua tela. Comparando manuscritos às respeitadas edições impressas conhecidas como "Urtext" —versões descontaminadas e definitivas de partituras, tais como definidas por musicólogos -, ele descobriu toda espécie de detalhes que nunca foram incorporados às versões impressas.

"Em nossa música impressa, temos cerca de nove dinâmicas, enquanto no manuscrito há cerca de 20 delas', ele disse, descrevendo minúsculas alterações na letra p —para "piano", ou suave— que Beethoven anotava em suas partituras. Alguns dos p têm uma cruz no traço vertical, por exemplo, e outros uma dupla cruz. "Existem 10 distinções só na área do andamento piano".

Ao mesmo tempo, os traços do processo criativo de Beethoven, com passagens eliminadas e emendadas, às vezes com visível impaciência, inspiram formas diferentes de tocar. Para um compositor conhecido pelo improviso como Beethoven, disse Kitchen, "era importante reagir à página, mas igualmente importante era a incrível liberdade de ir aonde o ouvido levar".

O compositor Dan Visconti, que usa iPads em seu trabalho com o Fifth House Ensemble, de Chicago, disse que a tecnologia "está mudando a cultura, de certa maneira". Ele acrescentou que "agora que é possível obter diferentes versões de partituras com facilidade, não vejo músicos olhando para alguma coisa e imaginando que seja imutável. Como resultado, não existe mais uma fidelidade tão servil ao texto".

Agora que músicos executam o tipo de sofisticada arqueologia musical no passado reservada a acadêmicos, as editoras profissionais de música podem se tornar espécie ameaçada. Ou pelo menos a natureza de seu trabalho vai mudar, com edições revisadas lançadas em escala de tempo mais fluida.

Mas Ron Regeve, pianista e vice-presidente de música da Tonara, disse não acreditar que as editoras profissionais estejam por desaparecer, enquanto os músicos exigirem partituras de alta qualidade. De fato, a era digital traz certas vantagens.

"Até agora, as editoras tinham só uma chance de colocar o que sabiam em uma edição fixa", ele disse. "Agora podem mudar a partitura continuamente, de acordo com as mais recentes pesquisas, e em lugar de terem de reeditar e gastar milhões em uma nova edição em papel, basta atualizar um arquivo".

Já que os compositores também estão envolvidos na revolução digital, o processo de criação deles - os rascunhos, correções e trechos descartados que intrigam os músicos nos manuscritos —são muitas vezes capturados em uma sequência de arquivos atualizados. Kitchen disse que quando seu quarteto testa uma nova obra para um compositor, mudanças às vezes são decididas na hora e compartilhadas com os músicos por rede sem fio.

"O que terminamos por ter diante de nós à primeira vista não se parece com as partituras maravilhosamente expressivas de Beethoven", ele diz. "Mas existe a versão final, e depois a versão realmente final, e talvez por fim a versão finalmente final. Um musicólogo, no futuro distante, fará a mesma coisa que fazemos agora ao procurar correções em um manuscrito de Beethoven".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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