Folha de S. Paulo


crítica

Releitura LGBT de contos de fadas cai em narrativa rudimentar

Era uma vez um garoto que nasceu com a vontade de, vez em quando, se vestir com as roupas que os outros diziam ser de garota. Dando vazão à sua individualidade, começou a fazer vídeos na internet contando sua história. Vira uma estrela e é convidada a reescrever as histórias que ouviu desde criança, mas com direito a colocar personagens como ela mesma.

Assim nasceu "Over the Rainbow", uma coletânea de contos de fadas re-escritos por lésbicas, gays, transexuais e transgêneros, na sua maioria famosos por seus vídeos no YouTube.

Parte do tsunami de livros escritos por vlogueiros, a obra é assinada por: Eduardo Bressanim (36.253 inscritos), Renato Plotegher Jr. (18.128 assinantes no seu canal onine, Chá dos 5) Maicon Santini (226.463 seguidores) e Lorelay Fox (141.092) e mais uma autora, de fora desse universo.

Como marketing, funcionou. Houve uma fila de três andares no lançamento paulistano, com fãs querendo mais fotos do que autógrafos.

Greg Salibian - 30.ago.2015/Folhapress
A escritora Milly Lacombe, uma das autoras de 'Over the Rainbow
A escritora Milly Lacombe, uma das autoras de 'Over the Rainbow'

Os enredos também prometem. João vira um jovem de gênero fluido e Maria uma lésbica masculinizada que quebra a cara (literalmente, narizes e dentes ficam pelo caminho) de quem aponta o dedo para seu irmão frágil. Rapunzel, aqui, é um pequeno príncipe do camarote que, aos 20 anos, torra a fortuna dos pais, magnatas da mídia. O primeiro beijo que troca com o galã de uma novela juvenil é aditivado pela fumaça de maconha que trafega de uma boca para outra.

FINAL FELIZ

As possibilidades parecem promissoras. Mas o conto de fadas não tem final feliz. Toda desenvoltura que eles apresentam na tela do YouTube parece secar no instante que entra em contato com papel. O resultado é uma prosa truncada e fluida como uma roda quadrada.

Abundam momentos de erotismo barato –trechos como "Guto pode sentir como Matheus é quente e bem-dotado pelo grande volume de sua calça" parece ter sido feito sob medida para uma versão homo da franquia "Sabrina".

Se o picante é muito apimentado, o extremismo vale para os trechos melosos. "Como [o amor] pode ser o melhor sentimento se só traz sofrimento?", pondera o Fera gay, num arroubo de inocência melosa que nem a Disney na década de 1950 ousaria colocar na boca de um personagem.

Há ainda pitadas de moralismo –o Rapunzel menino só se apaixona pelo cara para quem não dá no primeiro encontro– o que vai de encontro ao caráter moralizador que deu origem aos contos de fada, mas que poderia ter sido deixado para lá na sua versão libertária.

Parece que os expoentes da internet confundem literariedade com empoamento. E dá-lhe pretérito mais que perfeito! Há centenas de verbos conjugados no tempo de quem quer ser pomposo (Uma só frase tem "fora, estara, caíra e vivera").

Não faltam lombadas de hiperdidatismo nas narrações ("O que resta aos moradores de rua, prostitutas, travestis e homossexuais é se juntar, criando algum vínculo de companheirismo", ensina a Branca de Neve transexual, que vai morar com sete travestis após perder uma fortuna).

TRUQUES

A falta de traquejo e estilo insosso dos autores vira um "menage à trois" com a repetição de truques narrativos. Três dos cinco contos começam com o personagem despertando no seu quarto, manopla que permite abrir também os olhos do leitor para o universo que o cerca. Questão de edição.

(Pausa para uma necessária ressalva. Há uma quinta autora, que não saiu da internet. A jornalista Milly Lacombe criou uma Cinderela adolescente onanista que só está a um obstáculo do suicídio: sua preguiça aguda. Apaixona-se pela meia-irmã. Vai ao baile com uma roupa feita não por ratos encantados, mas por uma travesti chamada Perdição. O sapatinho de cristal dá lugar a um scarpin tamanho 40, que serve de apoio para um final surpreendente. Um texto com vida e fluidez própria –talvez por isso tenha sido escolhido para abrir o volume. Mas um conto só não faz uma antologia.)

De volta aos demais 80% das páginas: É erro achar que colocar um aplicativo de pegação aqui e uma cena de bullying ali é criar personagens críveis e contemporâneos. "O resultado são contos de fadas que não poderiam ser mais atuais", prometem as propagandas do livro, anunciado no metrô e em pontos de encontro da comunidade, como o shopping Frei Caneca. Poderiam, sim, ser mais contemporâneos, mesmo que tivessem sido escritos no século 18.

Havia uma bifurcação na estrada de tijolos amarelos, e dois caminhos levariam o livro ao palácio do sucesso: fazer boa literatura ou panfletagem eficiente. Mas o resultado é amorfo, não chega a ser uma cartilha para ser entregue na Parada do Orgulho LGBT nem tampouco literatura para ser colocada em prateleira de livraria.

Over The Rainbow
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Merece louvor a iniciativa da obra e a escolha ousada dos nomes, quase todos estreantes na ficção escrita. Mas passar um pano no fato que o livro é pouco polido, repetitivo e tem uma apuração narrativa rudimentar seria preconceito positivo. E o que a gente quer não é justamente ser tratado como igual? Eis.

OVER THE RAINBOW
AUTORES: Milly Lacombe, Renato Plotegher Jr., Eduardo Bressanim, Maicon Santini, Lorelay Fox
EDITORA: Planeta
QUANTO: R$ 36,90 (222 págs.)


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