Folha de S. Paulo


Último vaqueiro relembra expedição que inspirou 'Grande Sertão: Veredas'

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Na viagem que fez pelo sertão de Minas Gerais em 1952, João Guimarães Rosa era conhecido pelos vaqueiros apenas como Joãozito. Hoje, ainda é assim que o último remanescente da expedição se refere ao diplomata e escritor.

"Joãozito era meio caladão, mas engraçado. Contava casos e gostava também de ouvir a gente contar para ele. Sempre [estava] com uma cadernetinha pendurada no pescoço. E nela, escrevia as coisas de qualquer jeito", relembra Francisco Guimarães Moreira Filho, 81, mais conhecido como Criolo.

A viagem é histórica porque serviu de subsídio para parte da obra de Guimarães Rosa: o conjunto de sete novelas "Corpo de Baile" e para o romance e obra-prima "Grande Sertão: Veredas" –que seria inicialmente uma das histórias de "Corpo de Baile". Ambos os livros foram lançados em 1956, há 60 anos.

Alexandre Rezende - 24.mai.2016/Folhapress
SETE LAGOAS, MG, BRASIL, 24-05-2016, 12:30h. Francisco Guimarães Moreira Filho, o
Francisco Guimarães Moreira Filho, o "Criolo", na empresa de sua familia em Sete Lagoas

Criolo tinha 17 anos quando participou da travessia de dez dias do escritor pelo interior de Minas Gerais. A comitiva foi organizada pelo pai de Criolo, Chico Moreira, e saiu da fazenda Sirga, onde hoje é o município de Três Marias, para levar 180 cabeças de gado até a fazenda São Francisco, em Araçaí, a 240 km de distância.

Guimarães Rosa (1908-1967) era primo de Chico e foi junto para conhecer o dia a dia do sertanejo. Aprendeu a andar de cavalo, a tocar boiada e, quando voltou para casa, no Rio de Janeiro, levou um papagaio.

Quatro anos depois, publicou os dois livros. Em "Corpo de Baile" (1956), um personagem inspirado no capataz Manuelzão (Manuel Nardi, morto em 1997) está no título de uma das novelas.

"O sucesso dele como escritor foi 'Grande Sertão', e saiu dessa viagem da boiada", diz à Folha Criolo, que ganhou o apelido ainda na infância –uma ironia por ser branco demais.

Numa sala de sua pequena empresa em Sete Lagoas (MG), onde aluga guinchos, Criolo espalhou fotos da expedição nas paredes, que foram registradas pela revista "O Cruzeiro". Uma placa diz: "A origem do Grande Sertão: Veredas".

Mas, do livro mesmo, Criolo conhece apenas o título. "Não consegui ler, nem papai. Apesar de ser pessoa estudada, ele não conseguiu entender o palavreado."

Em 2007, para iniciar a comemoração do centenário do nascimento do escritor, Criolo refez a viagem, que também durou dez dias, acompanhado de mais 40 pessoas.

'SAUDADES DAÍ'

"Chico, saudades daí tenho sempre", diz a carta de Guimarães Rosa emoldurada na parede onde fica o acervo de Criolo. Assinada em 6 de outubro de 1952, ela foi enviada para seu pai.

"O papagaio está gordo e alegre, magnífico. Aprendeu muita conversa carioca, mas não se esqueceu do repertório sertanejo: (...) sabe chamar as vacas, com notável entusiasmo", escreveu Guimarães Rosa.

Da comitiva de nove vaqueiros que acompanhou o escritor, Manuelzão se tornou o mais conhecido e morreu como uma figura mítica do sertão de Minas Gerais.

Já Chico Moreira, que era o dono da fazenda e foi quem viabilizou a expedição, é pouco lembrado. De acordo com o filho, ele tentou ajudar ao máximo Guimarães Rosa a se adaptar à viagem.

Mandou, inclusive, um funcionário ir antecipadamente de uma fazenda a outra com uma mula mansa para o diplomata cavalgar. Mas foi Manuelzão quem ensinou Guimarães Rosa a montar.

Criolo reclama que as fotos da expedição foram retiradas de exposição no museu Casa de Guimarães Rosa, que fica em Cordisburgo (MG), onde o escritor nasceu. Para ele, só querem que o escritor apareça em fotos usando smoking.

"Não querem que fale que ele foi peão, que andou a cavalo, que tocou boiada. Querem que ele só seja alta sociedade", queixa-se.

Procurada, a coordenação do museu informou que as exposições são temporárias e trocadas constantemente. Também informa que as fotos da expedição continuam, sim, a fazer parte do acervo do museu.


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